domingo, novembro 26, 2006

«Não é só utopia partilhar o conhecimento»

Opinião de Koïchiro Matsuura, director-geral da UNESCO [entidade da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, Ciência e Cultura].

Será a partilha do conhecimento uma utopia, a nova buzz word da comunidade internacional? Não pensamos assim. Alguns exemplos dizem mais que uma dúzia de análises. Em 1965, Singapura estava infestada de bairros de barracas e a sua economia era subdesenvolvida. Desde então, teve políticas de investimento na educação, desenvolvimento das competências e da produtividade e atracção de indústrias de elevado valor acrescentado. O PIB per capita de Singapura ultrapassou hoje o de muitos países do Norte.

Uma economia baseada na partilha e disseminação do conhecimento é uma oportunidade para os países emergentes e bem-estar das suas populações. Apesar da sua pobreza, o estado indiano de Querala tem hoje um nível de desenvolvimento humano aproximado ao dos países do Norte: a esperança de vida é de 73 anos e a taxa de escolaridade mais de 90%. Querala contribui para fazer da Índia o oitavo país do mundo quanto a publicações científicas.

Em 1971, milhares de migrantes instalaram--se numa planície vazia a 20 km de Lima e criaram a Villa El Salvador. Pondo em prática a confiança neles próprios, os seus habitantes instalaram centros educativos e associações. Um corajoso esforço de desenvolvimento comunitário participativo apoiado em mulheres transformou a área de barracas numa cidade organizada. Reconhecida em 1983 como município, a Villa El Salvador criou a sua universidade em 1987. Hoje, 98% das suas crianças frequentam a escola e a taxa de iliteracia adulta (4,5%) é a mais baixa do país. A cidade tem 400 mil habitantes, incluindo 15 mil estudantes. A municipalidade fornece pontos de acesso a computadores aos seus cidadãos, que expressam as suas opiniões sobre os assuntos em discussão na comunidade.

O conhecimento partilhado é uma poderosa alavanca na luta contra a pobreza e a chave para a produção de riqueza. A Finlândia, que sofreu uma severa crise económica na sequência da desintegração da União Soviética é citada como modelo: investe quase 4% do PIB em pesquisa, o sistema educativo é altamente cotado na OCDE entre os países industrializados e a variação no desempenho entre alunos e instituições educativas é espantosamente baixa - o sucesso à escala das sociedades do conhecimento pode muito bem ser combinado com equidade.

Estes exemplos estão longe de ser isolados. Por todo o mundo, há países no processo de inventar novos estilos de desenvolvimento, baseado no conhecimento e inteligência, uma vez que o potencial de desenvolvimento de uma sociedade dependerá no futuro menos das riquezas naturais e mais da capacidade de criar, distribuir e utilizar o conhecimento. Irá o séc. XXI assistir ao crescimento de sociedades baseadas no conhecimento partilhado? Como este é um bem público que deve estar acessível a todos, ninguém se deve achar excluído numa sociedade do conhecimento. Mas a partilha deste não pode ser reduzida à divisão de conhecimentos ou à troca de um recurso escasso, que países, sociedades e indivíduos reivindicam competindo. Em sociedades interligadas, criatividade e possibilidades de troca ou partilha são grandemente aumentadas. Estas sociedades criam um ambiente particularmente favorável ao conhecimento, inovação, formação e pesquisa. As novas formas de sociabilidade em rede que estão a desenvolver-se na Internet são horizontais e não hierárquicas, encorajando a cooperação, como é bem ilustrado pelos modelos de software de computador de pesquisa "colaboradora" ou "fonte aberta".

O aparecimento de sociedades em rede e a concomitante redução de custos de transacção encoraja o crescimento de novas formas de organização produtiva, baseada na troca e na colaboração dentro de uma comunidade que partilha. Isto é um cenário particularmente importante contra a tentação da guerra económica: estas novas práticas sustentam a esperança de que seremos capazes de chegar a um equilíbrio justo entre a protecção dos direitos de propriedade intelectual, necessária para a inovação, e a promoção do conhecimento pertencente ao domínio público.

A partilha de conhecimento não pode, no entanto, ficar confinada à criação de novos conhecimentos, à promoção de conhecimentos pertencentes ao domínio público ou à redução da limitação cognitiva. Implica não só acesso universal ao conhecimento como também a participação activa de toda a gente. Será, por conseguinte, a chave para as democracias do futuro, que devem ser baseadas num novo tipo de espaço público, em que encontros genuinamente democráticos e deliberações que envolvam a sociedade civil tornarão possível lidar com os problemas sociais concebidos em termos de antecipação. Os "fóruns híbridos" e as conferências de cidadãos prefiguram este desenvolvimento em alguns dos seus aspectos.

Os obstáculos que se colocam no caminho da partilha do conhecimento são reconhecidamente numerosos. Eles estão, assim como as soluções que apresentamos, no centro do Relatório Mundial da UNESCO Rumo às Sociedades do Conhecimento, dirigido por Jérôme Bindé e publicado há alguns meses. A Conferência do Séc. XXI que acabámos de organizar na UNESCO sobre o tema da partilha do conhecimento ajudou, sem dúvida, a identificá-los mais claramente: a polarização, a limitação digital e, mais sério ainda, a fractura do conhecimento e a desigualdade entre os géneros - são estes os principais impedimentos à partilha do conhecimento. Para ultrapassar estes obstáculos, as sociedades têm de investir maciçamente em educação ao longo da vida para todos, na pesquisa, no desenvolvimento informático e no crescimento das "sociedades do saber" e têm de cultivar um maior respeito pela diversidade das culturas cognitivas e pelo conhecimento local, tradicional e indígena. A partilha do conhecimento não será eternamente uma perspectiva futura, uma vez que não é o problema, mas sim a solução. A partilha do conhecimento não limita o conhecimento: faz com que este cresça e se multiplique.

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