sexta-feira, março 02, 2007

«Que professores vamos [passar a] formar?»

Mesmo aceitando que o Governo quis copiar modelos existentes em vários países europeus, a realidade portuguesa não é compatível com a formação de um professor generalista para o Ensino Básico (1º e 2º ciclos).
O Decreto-Lei nº 43/2007, de 22 de Fevereiro do Ministério da Educação sobre o regime jurídico da habilitação profissional para a docência na Educação Pré-Escolar e nos Ensinos Básico e Secundário seria uma boa lei, porque regula uma acção educativa há muito desregulada, mas contém um péssimo e gravíssimo remate: os anexos que definem os domínios das habilitações e que condicionam tudo à sua volta. Este desastre legislativo vai obrigar a mudar novamente as formações de 1º ciclo do Ensino Superior (licenciaturas enquadradas no processo de Bolonha que entraram em vigor no corrente ano lectivo e que não podem ser reformuladas tão cedo), a recente redefinição dos grupos de recrutamento de professores (Decreto-Lei nº 27/2006), todos os modelos de formação inicial de professores que as instituições formadoras andavam a preparar há muitos meses antes de ser conhecido o texto final da nova lei e as actuais condições de acesso ao Ensino Superior, porque cria novos domínios científicos bidisciplinares que não existem em nenhuma Universidade (por exemplo, não há licenciaturas em Biologia e Geografia, como agora se pressupõe existir).

De notar que, uma vez mais, as instituições de Ensino Superior foram obrigadas a registar os seus cursos com base em leis publicadas nas vésperas do prazo estipulado. E porque pediram pareceres às universidades quinze dias antes da aprovação agendada pelo Governo se depois avançaram com o diploma e ignoraram todos os pareceres enviados (a tempo)? Como pode Válter Lemos ter declarado ao «DN» (18-1-2007) que considerava "estranho que só agora [em Janeiro] surjam críticas a um diploma que está há vários meses em consulta", quando o anteprojecto só foi conhecido em Novembro e de imediato aprovado em Conselho de Ministros, ignorando todos os pareceres, incluindo o do Conselho Nacional de Educação? Como pode o Governo ter aprovado uma lei que contradiz todos os registos de licenciaturas feitos no âmbito do processo de Bolonha, criando, a posteriori, novos domínios científicos (nunca justificados) que anulam o trabalho feito pelas Universidades e Politécnicos?

Andou a comunicação social entretida com o "fait divers" do anúncio do professor tutor para o 2º ciclo, a propósito do novo diploma, mas esqueceu-se de investigar as implicações gravíssimas que a nova lei traz para o futuro da formação de professores em Portugal.

A nova lei parte de um princípio muito discutível na definição do perfil do professor desses dois grandes ciclos de formação (Básico e Secundário): o professor generalista. Já é duvidoso que um tal professor possa estar habilitado para ensinar "Todas as áreas do 1º ciclo do Ensino Básico e Língua Portuguesa, Matemática, História, Ciências da Natureza e Geografia de Portugal do 2º ciclo do Ensino Básico".

Este perfil de professor generalista é transferido, na prática, para o sistema do 3º ciclo e Ensino Secundário, sem nenhuma justificação visível. Mesmo aceitando que o Governo quis copiar modelos existentes em vários países europeus, a realidade portuguesa não é compatível com a formação de um professor generalista para o Ensino Básico (1º e 2º ciclos), não só porque existe em Portugal uma história de erros legislativos nas habilitações próprias para o ensino do Português e da Matemática, em particular, como por causa desses erros, ainda estamos a registar resultados negativos na aprendizagem nessas áreas fundamentais. Impunha-se, precisamente, o contrário: o reforço da formação científica dos futuros professores do Ensino Básico e não a sua dispersão em várias matérias não compatíveis entre si.

Também fica por justificar o reforço legislado da componente de formação pedagógica: afinal, os nossos alunos do Ensino Básico têm maus resultados na aprendizagem porque os professores não sabem ensinar o seu ofício ou porque não sabem ensinar aquilo que nunca aprenderam? Que supercurso de licenciatura pode conseguir formar em três anos um professor simultaneamente de Português, Matemática, Ciências da Natureza, História, Geografia de Portugal e Expressões? Como é que se pode ser professor de Português neste 2º ciclo, por exemplo, com uma formação científica de base de 30 ECTS (= 1 semestre)?! E formação exigida aos professores de línguas estrangeiras, por que razão está omissa? Bastará comprar um curso intensivo de Inglês em CD-ROM num quiosque para se ser professor de Inglês (na prática, isso está a acontecer no 1º ciclo, neste momento, sem que ninguém pareça levar a mal!)?

O novo enquadramento jurídico(?) para a formação de professores exigia uma explicação clara dos critérios que levaram a decidir criar um perfil de professor que está em total desacordo com os perfis desenhados no recente processo de Bolonha aplicado a partir de Julho de 2006 ao 1º ciclo de estudos. Mais grave do que isso, contradiz todos os avanços e autonomizações das ciências sociais, humanas e da vida que se registaram nos últimos 60 anos. Não há hoje uma área de conhecimento chamada "História e Geografia", por exemplo, como não há um domínio científico chamado "Português e Língua Estrangeira (excepto Inglês)". Isto é mais grave do que as notícias gelatinosas que a comunicação social tem fabricado de acordo com a receita que o Governo lhe tem fornecido a propósito do professor generalista para o 2º ciclo. Este novo quadro de domínios generalistas das habilitações profissionais para a docência não tem qualquer relação com todas as reformas que decorrem no Ensino Superior, não tem qualquer compatibilidade com os grupos monodisciplinares definidos no Decreto-Lei nº 27/2006, não tem paralelo em nenhum sistema educativo conhecido internacionalmente (não confundir a formação do professor generalista para o Ensino Básico, comum em muitos países, com a mesma formação para o Ensino Secundário).

A história recente do reconhecimento de habilitações para a docência em Portugal pode ser seguida pelo extraordinário parágrafo da última portaria sobre o assunto publicada por um Governo. Já este ano, a Portaria nº 88/2006 relata toda a sequência legislativa que regula esta matéria em Portugal desde 1984:
As habilitações agora reconhecidas [Portaria 88/2006] ao elenco de cursos reconhecidos como habilitações próprias para os 2º e 3º ciclos do Ensino Básico e Ensino Secundário, constante do Despacho Normativo nº 32/84, de 9 de Fevereiro, rectificado por declaração publicada no Diário da República, 2ª série, nº 77, de 31 de Março de 1984, com as alterações introduzidas pelos Despachos Normativos nºs 112/84, de 28 de Maio, 23/85, de 8 de Abril, 11-A/86, de 12 de Fevereiro, rectificado por declaração publicada no Diário da República, 2ª série, de 30 de Abril de 1986, 6-A/90, de 31 de Janeiro, 1-A/95, de 6 de Janeiro, 52/96, de 9 de Dezembro, 7/97, de 7 de Fevereiro, 15/97, de 31 de Março, 10-B/98, de 5 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 5-A/98, de 26 de Fevereiro, 1-A/99, de 20 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 7-M/99, de 27 de Fevereiro, 14/99, de 12 de Março, 28/99, de 25 de Maio, e 3-A/2000, de 18 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 3-A/2000, de 21 de Janeiro, e ainda das Portarias nºs 92/97, de 6 de Fevereiro, aditada pela Portaria nº 56-A/98, de 5 de Fevereiro, e 16-A/2000, de 18 de Janeiro.
Este quadro legislativo em cadeia é revelador de uma falta de pensamento estratégico para o sistema de formação inicial de professores em Portugal nos últimos 30 anos. Infelizmente, essa falta mantém-se e agrava-se com a presente lei.

Os cursos reconhecidos pelo Ministério da Educação, através da Portaria nº 88/2006 de 24 de Janeiro, como habilitação própria para a docência foram organizados pelo Decreto-Lei nº 27/2006, de 10 de Fevereiro, da seguinte forma (exemplos seleccionados):
[para melhor ver a tabela, clique aqui].

A esta lógica monodisciplinar para as ciências humanas corresponde uma lógica bidisciplinar generalista (ignorando a autonomização histórica dos saberes aí representados) em dois grupos (510 e 520) que agora mantêm a mesma convergência (em todo o caso insustentável, porque as quatro ciências - Física, Química, Biologia e Geologia - há muito que conquistaram a sua autonomia científica, o seu próprio domínio de investigação e desenvolvimento, não existindo sequer licenciaturas dirigidas para estes pares científicos anacrónicos). Aquilo que é um princípio (correcto) de arrumação monodisciplinar das línguas e das ciências sociais e humanas é totalmente desvirtuado na nova lei que as agrupa em novos pares formativos:

ANEXO: "Domínios de habilitação para a docência, níveis e ciclos abrangidos, especialidades do grau de mestre e créditos mínimos de formação na área da docência"
[para melhor ver a tabela, clique aqui].

Em caso algum, esta disparidade de critérios é justificada pelo legislador.

Por que razão se criam dois "domínios de habilitação para a docência" a Português? Por que razão se criam dois domínios A e B e não C e D? Por que razão se cria um domínio de Português e de Línguas Clássicas, que não tem procura nas actuais licenciaturas, e se anula, inexplicavelmente, o domínio de maior procura que corresponde ao Português e ao Inglês, presentes nas variantes dos antigos cursos de Línguas e Literaturas Modernas e nos novos de Línguas, Literaturas e Culturas? Por que razão se elimina na refererência 6 o Inglês como possibilidade combinatória com o Português, anulando na base da formação (1º ciclo ou licenciatura) a maior procura da variante de Estudos Portugueses e Ingleses? E por que razão se anula, em todos os domínios, a possibilidade de um licenciado num curso monodisciplinar de Língua Estrangeira estar em condições de leccionar essa Língua Estrangeira? Será aceitável, por exemplo, que um licenciado em Estudos Ingleses e Norte-Americanos não possa vir a ser professor de Inglês (porque o domínio de referência estipula a combinação obrigatória de duas línguas), quando fez pelo menos 120 créditos em Inglês (V. novas licenciaturas de 180 ECTS em Língua, Literaturas e Culturas, variante de Estudos Ingleses e Norte-Americanos ou similar)?

Por oposição injustificável, um licenciado no mesmo curso de 180 ECTS, na variante de Estudos Ingleses combinada com outra Língua Estrangeira, pode, a partir daqui, fazer um máximo de 78 ECTS obrigatórios e 22 opcionais (para poder atingir o mínimo estabelecido de 100 ECTS). Como pode este licenciado estar habilitado a leccionar Inglês e o que tem mais formação científica de base não o pode fazer? Que professor de Língua Estrangeira vamos formar quando o processo de Bolonha já obrigou a encurtar consideravelmente as formações iniciais das licenciaturas para três anos? Será possível dar formação científica de base a um futuro professor de Biologia e Geologia, de História e Geografia ou de Inglês e outra Língua com apenas TRÊS semestres (um semestre vale 30 ECTS no formato de Bolonha) de formação na licenciatura?!

Como podemos continuar a falar, hipocritamente, em mudança de paradigma da formação de professores ou em promessas de garantia da sua qualidade? Que cursos idóneos podem oferecer as instituições de Ensino Superior com este estrangulamento legislativo?

No remate legislativo em apreço ("Domínios de habilitação para a docência, níveis e ciclos abrangidos, especialidades do grau de mestre e créditos mínimos de formação na área da docência"), a nova lei devia ter optado por uma organização lógica das combinações possíveis entre todas as disciplinas. Por exemplo, na área das línguas, seria fácil, consensual e racional chegar a um quadro como o seguinte:
[para melhor ver a tabela, clique aqui].

Com o enquadramento jurídico que o Governo quer para regular a formação de professores, as universidades vão passar a formar wiki-professores, isto é, professores que podem fazer a sua formação científica de base apenas com as informações enciclopédicas generalistas da Wikipédia. É a melhor forma de termos professores "livres e gratuitos" (como a célebre enciclopédia) e um ensino cada vez mais inopioso. O Primeiro-Ministro devia explicar aos Portugueses se é assim que se deve entender uma das ambições fundamentais para o País do programa QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional), até 2013 - o 2º mandamento é o da qualificação dos trabalhadores portugueses. No que diz respeito aos professores, ficamos a saber que quanto menos souberem da ciência que ensinam, maior será a sua qualificação!
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Carlos Ceia é professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo o seu presente artigo de opinião sido publicado em «Educare.pt - O Portal da Educação».

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