sábado, outubro 06, 2007

«Empréstimos para estudantes: a crise do crédito chega a Portugal», artigo de Rui Namorado Rosa

A nova medida de conceder empréstimos aos estudantes que o desejem para pagamento das propinas, trombeteada por Sócrates, com pompa e circunstância como uma medida de imenso alcance social, trata-se de facto de mais um ataque ao ensino público e mais um negócio milionário para o capital financeiro. Os futuros licenciados vão iniciar a sua vida profissional em empregos precários ou pagos a recibo verde e com uma dívida que para muitos será incomportável. O exemplo do EUA, donde a UE copiou a medida, está aí para o demonstrar. A rendição do PS e do seu governo maioritário às inovações do capitalismo neoliberal atinge agora os jovens estudantes...
EUA: CUSTOS E BENEFÍCIOS DA SOCIEDADE DO CRÉDITO

O conceito de empréstimos para estudantes foi concebido e posto em lei pelo Congresso dos EUA em 1965 (Higher Education Act). O conceito expandiu-se sobretudo ao longo da última década e meia, e alastrou à outra margem dos Atlântico. Um novo mercado estava criado oferecendo um imenso potencial financeiro.

O sistema abriu caminho à constituição de uma rede de companhias que operam um sector de serviços que movimenta anualmente cerca de US$ 85 biliões. Os maiores fornecedores de crédito a estudantes são a SLM.N mais conhecida como Sallie Mae, o Citigroup e o JPMorgan Chase.

O nível das propinas praticadas por algumas universidades privadas mais conceituadas é superior ao rendimento mediano das famílias norte-americanas. Este indicador dá para perceber por que é que a maioria dos jovens norte-americanos se não desiste do aceder ao ensino superior tem de necessariamente se endividar profundamente, mesmo sendo prudentes, para conseguir obter um grau académico.

Em face de frequentes quebras de contrato por parte de estudantes incapazes de reembolsar as suas dívidas, o Congresso primeiro alargou o período de carência e reembolso. Mas mais tarde (mediante alterações introduzidas no Higher Education Act) retirou aos devedores em falta as protecções em geral facultadas no quadro dos direitos dos consumidores, negou a oportunidade de renegociação da dívida, facultou poderes de excepção às entidades credoras, incluindo a apropriação de salários e de subsídios sociais. Alguns Estados chegaram ao ponto de confiscarem as licenças profissionais aos faltosos.

E o problema não é episódico. Quase 5 milhões de jovens norte-americanos estão em falta no reembolso das suas dívidas; este número exorbitante é impulsionado por propinas muito elevadas, altas taxas de juro, penalizações incorridas por atraso nos reembolsos, e dificuldades de emprego. As consequências sociais são óbvias: adiamento do estabelecimento de vidas familiares, emigração forçada, doenças do foro psíquico e até suicídio.

Este negócio bilionário presta-se a jogos de influência e a transacção de favores envolvendo legisladores (que fixam as regras), oficiais governamentais (que supervisam a sua aplicação), universidades (que fixam propinas excessivas e beneficiam dos empréstimos para o seu financiamento) e as companhias que exploram o negócio dos empréstimos para estudantes (acumulando enormes lucros e mordomias).

Os casos de corrupção são presentemente objecto de investigação. O Congresso considera reduzir os subsídios federais de que esta “indústria” (já de si lucrativa) ainda por cima tem beneficiado (supostamente para mobilizar capitais privados em benefício dos estudantes). Este ano de 2007 o Procurador-Geral já concedeu retirar a Sallie Mae e o Citigroup da lista de entidades sob investigação em curso, em troca do pagamento de uma penalização simbólica e da promessa de se absterem de futuros conluios com funcionários universitários.

Sallie Mae tem 10 milhões de “clientes” e administra anualmente US$ 142 mil milhões; o seu administrador executivo é o mais bem pago CEO em Washington; e os ganhos anuais dos accionistas gozam de um crescimento de dois dígitos percentuais (29% em 2003) que o CEO atribuiu tanto ao crescimento da emissão de empréstimos como de taxas cobradas a devedores em falta. Propinas elevadíssimas e emprego não qualificado e precário alimentam cinicamente este sucesso financeiro.

Os títulos de empréstimos a estudantes são activos financeiros das casas emissoras, que estas consolidam em pacotes e transaccionam como valores mobiliários tipo “securities” (ABS), sobretudo a investidores institucionais; só em 2006 foram vendidos US$ 79 mil milhões. A mesma Sallie Mae alimenta a maior parcela deste negócio. A responsabilidade e o risco são desse modo dispersos, encorajando a atribuição de crédito mesmo em casos de duvidosa cobrança. O crédito ABS tem protecção muito limitada, quer porque a garantia federal só é aplicável a situações muito restritas, quer porque é já grande a proporção de empréstimos privados obtidos directamente por estudantes junto de bancos comerciais.

O mercado de crédito ABS é muito menor que o mercado hipotecário de imóveis que, através do colapso de agentes e casas de crédito operando com hipotecas “subprime”, entrou em grave crise neste Verão de 2007. Mas o crédito ABS é considerado ter comportamentos de algum modo análogos, e ter também entrado em terreno de excessiva exposição a risco.

O FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL É QUE SABE

Os EUA foram pioneiros neste território de criação de crédito para o enorme e renovado universo de jovens procurando prosseguir estudos e, por esta via, de uma assentada financiar o sistema de ensino superior, “educar” os jovens no consumo de crédito, e ampliar o mercado financeiro.

A “teoria económica” para as propinas e os empréstimos no ensino superior foi formulada pelo Fundo Monetário Internacional em termos claros. Primeiro, as Universidades devem ser financiadas por uma combinação flexível de fundos públicos e propinas, podendo estas ser cobertas por um título de dívida; o acesso ao crédito é invocado para argumentar que com ele os jovens de origem modesta não seriam descriminados no acesso a estudos superiores. Segundo, o empréstimo deve acomodar as propinas e, em países mais ricos os custos de manutenção também, ficando sujeito a uma taxa de juro próxima da taxa de referência bancária; o reembolso será feito em amortizações proporcionais à remuneração e colectado com os impostos sobre rendimentos, após a presumível conclusão de estudos e colocação no mercado de trabalho. “Idealmente” os custos iniciais deste esquema de empréstimo deveriam ser suportados pelo sector privado mas, em países em desenvolvimento, uma garantia governamental é chamada a cobrir os riscos da operação, sem o que o prémio de risco cobrado pelo capital privado seria insuportável. Terceiro, a aspiração de acesso ao ensino superior é crítica e deve ser promovida; jovens de origens mais modestas, pouco motivados e não informados sobre os custos e benefícios do prosseguimento de estudos, terão relutância em se endividar para esse efeito; os fundos públicos seriam necessários para captá-los.

Os três elementos da estratégia preconizada pelo FMI são pois: propinas não limitadas e adiáveis, reembolso dos empréstimos a ritmo adequado aos rendimentos futuros, e promoção activa do acesso ao ensino superior. A máquina de contribuições e impostos, já montada pelo estado, irá recolher os proveitos futuros dos investidores privados, sem margem de fuga.

No Reino Unido, as propinas foram fixadas e os empréstimos introduzidos em 1998. As reformas depois legisladas em 2004 adequaram finalmente o Reino Unido ao esquema recomendado pelo FMI. Desde 2006 as propinas são livremente fixadas pelas universidades. Assim, actualmente os estudantes britânicos podem optar por pagar as propinas ou por contrair um empréstimo a um agente bancário, o qual pagará as propinas directamente à universidade; mas os empréstimos são extensíveis à cobertura dos custos de manutenção; e, desde 2005, estudantes carenciados são elegíveis para receberem uma bolsa também, mas só para além da contracção do empréstimo, numa malha fina de captação de clientes bancários. O salário líquido que o futuro graduado auferirá será deduzido do reembolso da dívida, em conjunto com o imposto sob rendimento e contribuição para a segurança social; a fronteira público-privado esbate-se neste sistema em que as políticas públicas servem linearmente o capital privado.

Nas palavras do FMI, o esquema instaurado no Reino Unido pode ser tomado como exemplar. Austrália, Canada, Nova Zelândia são outros “bons exemplos”.

A CRISE DO CRÉDITO EM EMPRÉSTIMOS PARA ESTUDANTES

No início de Setembro de 2007 o governo Português anunciou com pompa o lançamento de um inovador sistema de empréstimos para estudantes. Ameaçado pelo governo de Guterres, o de Sócrates passou à acção. E a promoção publicitária oficial não se fez esperar, mesmo antes de a banca se dar a esse trabalho. A velha onda de estudos superiores por empréstimo chegou assim a Portugal.

Para o efeito, o governo aprovou previamente o Decreto-Lei n.º 309-A/2007, que alarga a actividade das sociedades de garantia mútua à prestação de serviços conexos em benefício de estudantes do ensino superior. O sistema de garantia mútua baseia-se numa parceria público-privado, em que sociedades de garantia mútua, instituições de crédito maioritariamente privadas, são resseguradas por um fundo público, o Fundo de Contragarantia Mútuo. A banca comercial ficou assim habilitada a conceder acesso automático ao crédito a estudantes do ensino superior, com garantia do estado. O Decreto-Lei esclarece: a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários foi ouvida; porém as associações de estudantes e de pais, o Conselho Nacional de Educação ou o Conselho de Concertação Social não tiveram nada a dizer no que foi exposto ser uma inovação a favor da educação, do ensino superior, da “sociedade do conhecimento” em Portugal. Para que conste, para o governo trata-se de uma operação financeira, sejam quais forem os custos sociais e culturais em que o povo Português forçadamente incorre.

Os empréstimos terão uma taxa de juro apurada com base na taxa dos “swaps”, e um “spread” máximo de 1,0%, e não carecem de avales ou garantias patrimoniais. O montante do crédito pode atingir € 5.000 por ano, por estudante, até um máximo de € 25.000. O reembolso deverá concluir-se até 12 a 16 anos após a contracção do empréstimo (anos de curso, mais 1 ano de carência de capital, mais 6 a 10 anos de reembolso). Para uma população escolar da ordem de 400 mil alunos em formação superior inicial ou intermédia, o montante do crédito a ser assim gerado aponta para vários biliões de Euros. Os fundos de valores mobiliários agradecem as novas oportunidades de especulação e ganhos.

No quadro de drástica redução do financiamento público para o ensino superior, as famílias Portuguesas recebem agora o “privilégio” de terem de se endividar, ainda por cima em condições expeditas junto das instituições bancárias, para por essa via poderem vir a liquidar as propinas de que crescentemente se alimentam as universidades. O governo achou oportuno garantir que as propinas não serão agravadas – este ano – diplomaticamente adiando por um ano esse novo passo da reforma do sistema de ensino superior em curso.

Os “clientes” elegíveis para este negócio são alunos inscritos em cursos pós-secundários de especialização tecnológica, licenciatura ou mestrado, no quadro da reforma de Bolonha imposta pelo governo. Mas com ingénua surpresa ficamos sabendo que o esquema é extensível a bolseiros de doutoramento e pós-doutoramento e, pasme-se, investigadores também.

Quer dizer que um “estudante” aplicado e brilhante atingirá o grau de doutor cerca dos 26 anos de idade, ao fim de cerca de 20 anos de frequência escolar ininterrupta, acumulando já 8 anos de dívida, no mínimo. E que, no quadro actual da “sociedade do conhecimento”, elevada “competição” e “mobilidade” e inovador empreendedorismo”, terá provavelmente de continuar a recorrer ao crédito para continuar a trabalhar, por mais três ou seis anos como pós-doc, que o governo entende ser um prosseguimento natural de “formação ao longo da vida”, ou então, com ou sem recibo verde, como micro-empresário contingente.

Quer também dizer que um jovem licenciado ou mestre, que queira ou tenha de entrar na “vida activa” iniciará um percurso profissional já carregando aos ombros uma divida e seus juros acumulados, sabendo que a banca e a autoridade do estado estão vigilantes. Esse jovem não só pagará os custos da sua educação como a pagará várias vezes. E, sob a pressão de ter de a pagar, terá de estar “disponível” para aceitar o trabalho que puder alcançar, como trabalhador precário e flexível, ou emigrar, com o espaço da União à sua frente.

Este quadro, que se foi compondo nos EUA e outros países anglo-saxónicos, e que agora a União Europeia se esforça por alargar a todo o continente Europeu, é indissociável do modelo económico e ideológico neoliberal da presente etapa do capitalismo. Para além do retrocesso social que se contem na agressão a direitos fundamentais dos cidadãos, em benefício do poder imperial e omnipresente do capital industrial e financeiro, esta etapa configura a financeirização extrema da vida económica e social, um salto em afrente na procura da sustentação de um “crescimento económico” já completamente fictício, que procura iludir a sobrevivência presente deste sistema inumano à custa de hipotéticos recursos, bem estar ou até a sobrevivência, de vidas e gerações futuras.
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Rui Namorado Rosa é professor catedrático da Universidade de Évora, sendo também professor convidado do Instituto Superior Técnico.
O presente artigo de opinião foi retirado de «ODiário.info», do qual Rui Namorado Rosa é editor, anteriormente já havíamos publicado outros textos do mesmo autor: «De Bolonha a Lisboa» e «O Ensino Superior em Crise».

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