Poderá começar-se pelo modelo de financiamento. Há quase duas décadas opuseram-se duas concepções. A primeira correspondia à defesa do contrato social até então em vigor e apoiava-se no texto Constitucional, que prevê que o Estado deve assegurar o carácter universal e tendencialmente gratuito do ensino. Afirmava que o ensino superior deve constituir um serviço público cujo funcionamento corrente deve ser financiado pelo orçamento de Estado, de modo a que uma fiscalidade progressiva actue como mecanismo de redistribuição do rendimento e de promoção da justiça social, propiciando a todos, independentemente da origem socioeconómica da família em que se nasceu, condições de maior equidade no acesso ao saber e ao desenvolvimento das competências susceptíveis de propiciar uma sociedade menos desigual. Um regime de bolsas e de apoio social deveria ajudar a superar as situações de exclusão prevalecentes.
A segunda concepção defendia o fim da «gratuitidade» do ensino superior – que supostamente desresponsabilizava o aluno e desvalorizava o grau –, o que devia ser feito através da introdução de propinas, mais ou menos aproximadas do custo real do ensino, segundo as versões, como forma de assegurar o aumento da qualidade das formações e dos diplomas. Esta perspectiva sustentava ainda que o novo modelo de financiamento, através de diferentes escalões de pagamentos e isenções, faria com que os estudantes de maiores rendimentos pagassem propinas mais elevadas, para financiar o ensino dos estudantes mais pobres. A Lei 20/92, de 14 de Agosto, promulgada durante o governo de Aníbal Cavaco Silva no quadro de uma intensa contestação estudantil, fez até questão de sublinhar a ideia de que as propinas não serviriam para desresponsabilizar o Estado e pagar as despesas correntes (salários, etc.), definindo-as como receitas «a afectar, prioritariamente, à prossecução de uma política de acção social e às acções que visem promover o sucesso educativo». Prioritariamente... A cada instituição incumbia a fixação anual do montante das propinas, com base num valor máximo definido pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), e pelo órgão equivalente no ensino politécnico.
Do preço simbólico de 1200 escudos (cerca de 6 euros) antes da nova lei, as propinas passaram a ter um valor médio de 300 euros em 1995 e de 900 euros em 2005. Hoje, quase todos os estabelecimentos públicos, confrontados com um crónico subfinanciamento estatal que põe em causa o normal funcionamento das instituições, aplicam a propina máxima (972,14 euros), uma das mais altas da União Europeia (só dois países praticam valores mais elevados e sete não cobram qualquer montante). O modelo de financiamento com propinas, além de não ter contribuído para melhorar a qualidade do ensino, promoveu o recurso ao crédito bancário por parte de muitos estudantes que, não podendo agora cumprir com os pagamentos, são forçados a desistir do ensino superior.
Poder-se-ia pensar que esta é uma situação nova, mas um estudo de Belmiro Cabrito, professor no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, intitulado «Equidade no Ensino Superior – 1995-2005: Uma Década Perdida?», veio recentemente demonstrar que, já antes da crise, «o elitismo da universidade portuguesa agravou-se», afastando numa década um terço dos alunos mais pobres (a percentagem passou de 12,5 para 8,5 por cento). O estudo verificou também que «o aumento do número de bolseiros (no privado, sobretudo) não teve efeitos positivos na equidade do ensino universitário», que permanece bastante baixa.
Poderá este ser o caminho de uma modernização assente na formação de competências e na justiça social? Se a prioridade «é desenvolver as políticas sociais, é qualificar os serviços públicos, é reduzir as desigualdades na sociedade portuguesa», então não podemos perder mais décadas.
É absolutamente de LEITURA OBRIGATÓRIA este artigo de opinião de Sandra Monteiro, publicado na edição de Novembro do «Le Monde Diplomatique - edição portuguesa».
Sem comentários:
Enviar um comentário