sexta-feira, julho 07, 2006

«Chamar licenciatura a cursos de três anos [com o processo de Bolonha] é vender gato por lebre»

Entrevista a João Gabriel Silva, presidente dos Conselhos Científico e Directivo da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), para falar do momento decisivo em que estão a sua escola e o Ensino Superior em geral [com a implementação do processo de Bolonha]. Seguem-se críticas às Universidades que se estão a "politecnizar", à cegueira do Governo em querer acabar com alguns cursos [que têm poucos alunos inscritos], à incompetência entre professores, à balda entre alunos. De caminho, [João Gabriel Silva] diz que a FCTUC vai reformar-se "profundamente", para se preparar para a competição que aí vem.

Transformar a FCTUC numa escola de referência europeia (...) Consequência disso foi termos optado por adaptar quase todos os cursos a[o processo de] Bolonha só em 2007/2008. Não vou dizer nomes, mas a maior parte das Universidades portuguesas fez estritamente cosmética para se adaptar a[o processo de] Bolonha. A gente não entra nessa brincadeira.

[O processo de] Bolonha é a União Europeia do Ensino Superior, é uniformizar [os cursos] e aumentar muito a competição [entre instituições]. Ou somos instituições de qualidade, ou as elites vão tirar os cursos a Espanha, França ou Inglaterra. [O processo de] Bolonha facilita imenso a mobilidade. O doutor Alberto Amaral tem falado numa agenda escondida em Bolonha. E, caricaturando, diz que haverá países encarregados do Liceu, outros das Universidades. Portugal é candidato ao Liceu.

O ensino universitário corre o risco de se aproximar do modelo [de ensino] do politécnico. Antes [do processo] de Bolonha, temos licenciaturas de quatro ou cinco anos, mestrados de dois [anos] e doutoramentos de quatro ou cinco [anos]. Depois [do processo] de Bolonha, vamos ter três ciclos. E há um primeiro ciclo que se chama bacharelato, mas a que, em Portugal, se decidiu chamar licenciatura. E os primeiros ciclos vão ser quase todos de três anos. Portanto, era mais lógico chamar-lhes bacharelatos, designação que até já existia. Mas não. Estão a tentar convencer as pessoas de que a licenciatura pós-[processo de] Bolonha é igual à anterior. Isto é para rir, não é razoável. Por isso é que eu digo que há uma "politecnização" (os politécnicos dão, tradicionalmente, cursos curtos com objectivos profissionalizantes). Tentar oferecer em três anos o que se fazia [até agora, antes do processo de Bolonha] em cinco [anos] é "politecnizar" as Universidades. E há muitas Universidades em Portugal que o fizeram. Vão vender gato por lebre.

[A Declaração de] Bolonha é uma oportunidade e um perigo. Com a utilização do mesmo nome [licenciatura] numa coisa que demorava cinco anos e agora demora três [anos], o Governo pode ter a tentação de dizer "Ok, a gente financia [as] licenciaturas [de três anos], o resto [2º ciclo] fica por vossa conta".

Há muitas aulas que têm um interesse tão relativo que é perfeitamente justificável que [os alunos] não ponham lá os pés. [...] A cultura enraizada de que o professor faz mais ou menos o que lhe apetece é "chão que deu uvas". O professor deixará de ser a fortaleza para onde ninguém pode olhar. A gente [Conselhos Directivo e Científico da FCTUC] vai olhar e, se não estiver a correr bem, vai ter que se fazer qualquer coisa. Nem que seja mudar o professor. (...) Precisaremos de dois ou três anos para estabilizar o "qualitómetro". (...) Como forma de actuar sobre um mau professor, a sabática é pouco, mas [é] melhor que nada [fazer]. E há outros mecanismos... (...) afixar na parede os resultados [da avaliação dos professores pelos alunos], muitos [professores] envergonham-se da [sua] nota afixada na parede e passam a fazer o [seu] serviço melhor.

Não estendo a [minha] apreciação [de expectativa] a tudo o que [o ministro Mariano Gago] tem feito. [Como seja] o não financiamento dos cursos com [menos de] 20 alunos. É uma medida absolutamente cega, os critérios de qualidade não são tidos em conta. Se há cursos de engenharia que, para angariar alunos, nem sequer pedem Matemática como disciplina de acesso, há outros que exigem qualidade e, se calhar, ficam abaixo dos 20 [alunos inscritos]. Na Europa do Ensino Superior, onde é preciso qualidade e exigência, aplicamos um número cegamente? E isto não tem nada de inocente. A gente [FCTUC] tem, por exemplo, quatro cursos de determinada área, todos perto do limiar dos 20 alunos [matriculados]. Se fecham dois [desses cursos], os candidatos vão-se concentrar nos [dois outros cursos] que sobram. É relevante saber se os [dois cursos] que sobram são os melhores, ou [se são] os [cursos] que utilizaram truques para atingir um limiar [de alunos matriculados] mais elevado. Ou mesmo se são aqueles [cursos] que estão nas zonas demograficamente mais nutridas. O facto de um curso estar em Lisboa não o torna melhor que um curso que está em Coimbra, em Aveiro ou no Porto.

Sem comentários: