segunda-feira, outubro 09, 2006

José Reis: «[Processo de] Bolonha na periferia»

O mundo requer um uso cada vez mais intenso de conhecimento. Qualificações e aprendizagem tornaram-se valores essenciais das sociedades democráticas.
O chamado processo de “Bolonha” deveria ter convidado a um debate clarificador sobre produção e reprodução de saberes nos dias de hoje e, de caminho, [a um debate] sobre a capacidade da Universidade para se renovar. A meu ver, [o processo de] Bolonha abre campo a dois assuntos cruciais para esta discussão. Por um lado, sabe-se que o mundo requer um uso cada vez mais intenso de conhecimento.

Qualificações e aprendizagem tornaram-se valores essenciais das sociedades democráticas. Por isso, a generalização (idealmente mais de 60% da faixa etária correspondente) do Ensino Superior à maioria dos jovens em fase de formação é uma exigência da cidadania e da inovação social. A Universidade tem, neste contexto, de ser democrática e de massas. Isso implica que ofereça, com clareza e transparência, um primeiro ciclo de estudos dirigido aos conhecimentos nucleares que formam as disciplinas em que se organizam os curricula universitários e que são a base dos primeiros desempenhos profissionais. Trata-se de ensinar aquilo que importa ser aprendido naquela fase da vida e que constitui o conhecimento fundador de cada área, e que a experiência futura há-de especializar e aprofundar. Em sede académica é esse, aliás, o papel do segundo ciclo – mestrados – que devem ser entendidos como especializações. Nas Universidades avançadas, o primeiro grau é, em geral, de três anos, tal como aponta o primeiro ciclo [do processo] de Bolonha, correspondente à licenciatura. É este o instrumento da generalização democrática da aprendizagem superior, papel que só a Universidade pode desempenhar. É certo que ela [Universidade] vê hoje o seu lugar de instância de produção de conhecimentos disputado por outro tipo de instituições (empresas e conglomerados empresariais, ‘think tanks’, centros de investigação e tecnologia, complexos militares e tecnológicos). Mas estas agem sobretudo noutro plano, o do desenvolvimento de conhecimento de fronteira. Como a Universidade, para subsistir, tem também de ser largamente inovadora neste domínio – sob pena de se trivializar – o desafio a que está sujeita é, pois, duplo: desempenhar uma missão democrática e qualificante e ser muito activa na produção de conhecimentos avançados, renovando-se radicalmente. As duas coisas podem e devem ser feitas em simultâneo. Isto leva-nos ao segundo campo aberto por Bolonha. O papel da Universidade cumpre-se em três ciclos, o último dos quais assenta, em geral, em programas de doutoramento. É aqui que se joga a possibilidade de a Universidade continuar a liderar a criação de conhecimentos, gerando a excelência e a diferenciação próprias da especialização avançada.

À luz desta maneira de ver noto dois problemas na recepção (tipicamente periférica) [do processo] de Bolonha em Portugal: um é que a Universidade não parece estar a tratar a questão da investigação avançada e dos correspondentes programas de doutoramento com a concentração estratégica que o assunto exige; o outro (o problema principal) é que, em matéria de primeiros ciclos, o que devia ser simples tornou-se opaco.

Quanto a este último aspecto, tomo como exemplo a concepção das novas licenciaturas em Economia [segundo os cânones do processo de Bolonha]. Em vez de um grau transparente, viabilizador dos primeiros desempenhos profissionais e fornecedor dos conhecimentos nucleares, as Universidades afadigam-se em desvalorizar o próprio [primeiro] grau que vão conferir e lançam-se na demonstração da ideia de que, para se ser economista, são precisos quatro anos, isto é, deve acrescentar-se à licenciatura um outro diploma com o qual querem, numa lógica de “mercado protegido”, conservar os estudantes por mais um ano, com os consequentes benefícios orçamentais e mais algum espaço para interesses meramente corporativos. Começaram, pois, com manifesta reserva mental, a inventar novas ofertas, sem legitimidade social para isso nem relevância prática. Foi esta a sua “agenda escondida”. Para isto contribuiu a Ordem [dos Economistas] que, embora sem poder para regular a profissão (felizmente), veio também dizer, no que parece ser uma mera cumplicidade académica, que sim senhor, só se é economista com quatro anos de estudos.

Fica assim esquecido o que nunca se devia esquecer: que a missão da Universidade é assegurar bens-públicos (conhecimento e graus académicos transparentes e indiscutíveis), não é privilegiar interesses fechados. Mas foram estes que tomaram a dianteira. Parece-me, aliás, óbvio que a Universidade só aplica [a Declaração de] Bolonha porque não pode fugir-lhe e que, aplicando-a, lhe subverte amplamente o significado. Talvez estejamos perante uma instituição secular com um futuro curto. Se assim for, não sobrará muito tempo para pedirmos contas às burocracias que a dirigem...
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José Reis, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais, tendo sido secretário de Estado do Ensino Superior (de 1999 a 2001) e candidato (vencido) nas eleições para a Reitoria da Universidade de Coimbra (em 2003) com o programa «Um Outro Futuro para a Universidade de Coimbra».

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