domingo, dezembro 31, 2006

Geração desenrasca[-se] com apenas mil euros

Têm entre 20 e muitos e 30 e poucos anos. São licenciados, pós-graduados, mestres. Pensavam que o canudo era a garantia de uma vida desafogada. Mas enganaram-se redondamente.
Quando, aos 15 anos, Jorge Silva se imaginava com mais 15 [anos] via-se com uma criança pequena ao colo, a mulher ao lado e um cão deitado aos [seus] pés. Os quatro habitavam uma casa com jardim e garagem. O tempo passou, o Jorge concluiu uma licenciatura em Sociologia, fez uma pós-graduação, pensa no mestrado e, aos 31 anos, vive num minúsculo apartamento no bairro da Graça, em Lisboa.

Partilha a casa e a renda – 460 euros – com dois amigos. O Jorge trabalha há cinco anos numa editora, onde aufere um salário bruto aquém dos 700 euros. “Não é que seja infeliz, mas tinha imaginado uma vida diferente, com alguma estabilidade.” Se ganhasse um pouco mais, o sociólogo seria um ‘mileurista’, que é como chamam, na Espanha e na Alemanha, aos jovens de 20 e muitos ou 30 e poucos anos, com formação superior e conhecimento de línguas, cujo ordenado, no entanto, não excede mil euros.

Uma parte importante do salário usam-na para pagar a renda ou a prestação da casa, em regra no centro da cidade, onde há movimento. “Ganhar mil euros não era mau... eu sou mais um ‘setecentoseurista”, ri-se Jorge Silva, abrindo uma lata de cerveja com o cuidado de não estorvar o gato Tolstoi adormecido sobre os seus joelhos. “Na minha vida de sonho tenho um cão, mas o meu horário de trabalho e a dimensão do meu apartamento não permitem.” É mais fácil tratar do Tolstoi.

De acordo com um estudo da socióloga Natália Alves, a média das remunerações auferidas pelos licenciados da Universidade [Clássica] de Lisboa no primeiro emprego é de 709,90 euros. Mais de metade – 57,8 por cento – ganha entre 501 e 1.000 [euros].

O salário de Cláudia Ramos, de 27 anos, artista plástica e professora de Desenho, vai inteiro para pagar a renda do apartamento onde vive: 400 euros. E a luz, a água, alimentação, a roupa? “Organizo ateliers para crianças e, quando há oportunidade, faço ilustrações para livros.” Em situação de aperto, a mãe não lhe nega ajuda.

Cláudia vive na Baixa de Lisboa. Partilhava a casa com uma amiga, que, entretanto, partiu para o estrangeiro. “Foi muito complicado: de repente tive de pagar a renda sozinha. Pensei em alugar um quatro, mas o espaço faz-me falta para o meu trabalho. Preciso de um sítio onde possa desenhar descansada.”

O Jorge não tem automóvel e a Cláudia conduz um dois-cavalos muito velho. “As pessoas apontam o meu ‘chaço’ e riem-se. Por que é que, em vez de acharam piada, não se oferecem para pagarem o arranjo e a pintura?”, pergunta, muito bem humorada, a artista plástica, para quem a ligação doméstica à internet e TV por cabo não passam de “luxos incomportáveis”.

Na casa dela há muitos livros – nas estantes, em cima da mesinha, ao lado da cadeira. “Quando vivia com os meus pais comprava dois ou três [livros] todas as semanas. Isso acabou.” Cláudia não dispensa as idas ao cinema – desde que seja à segunda-feira, “porque é mais barato” – e não prescinde das viagens. Em 2005 passou uma semana em Roma. Quando regressou teve de apertar o cinto dois ou três furos acima do habitual. “Nunca almoçava fora. Nos dias em que o meu horário me obrigava a passar a hora da refeição na escola levava comida de casa.”

O Jorge já não pensa na casa com jardim, mas ainda não perdeu a esperança de ser pai. “Talvez, com um bocado de sorte, aos 40 ou aos 50 anos”, ironiza. Por que não agora? “Impossível. E não é só por causa do dinheiro que não tenho. Também o ritmo de trabalho e os horários são incompatíveis com a vida familiar.”

Inês Bastos, a viver no Bairro Alto, em Lisboa, é jornalista, a primeira licenciada da sua família. “Os meus pais sempre me incentivaram a que estudasse para ter uma vida sem privações.” Não se trata – repara – de ser ou não pobre num País onde dois milhões de pessoas vivem abaixo do limiar de pobreza. “O que está em causa é a frustração das expectativas. Existe um sentimento de falhanço, de inviabilidade económica.” Ela chega ao fim do mês com metade do salário do próximo já gasto. “Esta ideia de uma geração de mileuristas tranquiliza-me. Não sou a única que não consigo realizar os sonhos.”

O sociólogo Luís Capucha, investigador do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) associa as dificuldades dos jovens adultos à democratização do Ensino Superior. “Há 20 anos a licenciatura assegurava o emprego. Hoje massificou-se.” Pelo caminho ficaram os projectos de bem-estar material, de estabilidade emocional e constituição de família dos 'mileuristas'. Ou dos que, em Portugal, nem a 'mileuristas' chegam.

“JOVENS SÃO OS NOVOS POBRES”

“O 'mileurista' é um jovem licenciado, com conhecimento de línguas, pós-graduações, mestrados, cursos (...) que não ganha mais de mil euros [de salário mensal]. Gasta mais de um terço do seu salário na renda porque gosta de viver no centro da cidade. Não consegue poupar dinheiro, não tem casa própria, não tem carro, não tem filhos, vive um dia de cada vez... às vezes é divertido, mas cansa (...)” - assim escreveu Carolina Alguacil na carta que, em Agosto do ano passado, enviou ao jornal espanhol «El País».

Carolina tem 27 anos, reside no centro de Barcelona, trabalha numa agência de publicidade e assume “soy 'mileurista'”, termo que inventou.

Que esta geração – ou, como se tem escrito, esta “nova classe social” – não é exclusiva da Espanha atestam-no investigadores como Louis Chauvel, professor de Ciência Política, que, em entrevista ao jornal francês «Nouvel Observateur» afirma: “Os novos pobres são os jovens.” Segundo Chauvel, os pobres do século XIX e do princípio do século XX – operários desqualificados, agricultores, idosos – pertencem a uma sociedade em vias de desaparecimento.

Carolina escreveu a carta ao «El País» depois de ter passado férias em Berlim, onde encontrou jovens adultos como ela: licenciados e mal pagos.

PROJECTO ADIADO

A maioria pôde estudar mais do que [a geração d]os pais e pensava que viveria melhor do que eles. Afinal, não foi bem assim. Uma breve radiografia dos 'mileuristas'.

EM CASA DOS PAIS

Dois terços dos jovens europeus vivem em casa dos pais. De acordo com o EuroBarómetro, as raparigas saem, em média, com 23 anos. Os rapazes abandonam o ‘ninho’ aos 26. Existem diferenças consideráveis entre o norte e o sul da Europa. No norte os jovens são independentes mais cedo.

EMPREGO E CANUDO

Em Março mais de 42 mil licenciados estavam desempregados, o que representa uma subida de 14,1% relativamente ao mesmo período de 2005. Dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) revelam que o desemprego apenas aumentou entre os licenciados.

HABILITAÇÕES A MAIS

Só metade dos licenciados da União Europeia [UE] com idades entre 25 e 34 anos executa funções de acordo com o grau de habilitações. Em países como a Espanha tal percentagem situa-se abaixo da média, ao contrário do que sucede em Portugal, Alemanha, Luxemburgo, Hungria, Polónia e Eslovénia.

TRABALHO TEMPORÁRIO

Ao contrário da maior parte dos países da UE, em Portugal o emprego temporário é uma realidade mais próxima das pessoas com habilitação superior, por comparação com os menos qualificados. Estes, bem como os detentores de formação média, gozam de maior segurança no emprego.

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