Como em todas as profissões, também a vida de um universitário é feita de encantos e desalentos. Dado que o ciclo de produção se repete sucessivamente, os momentos de mais e menos alento alternam no tempo com uma certa regularidade.
Assim, se em tempo de aulas prevalece o usufruto da paixão pelo acto de ensinar gente mais jovem, os finais de semestre prestam-se ao desencanto e, tantas vezes, à frustração perante os resultados das avaliações.
Vem este intróito a pretexto dos índices de sucesso escolar no nosso ensino superior. Os números falam por si. Folheando os ‘Education at a Glance’ que a OCDE publica regularmente, as comparações internacionais põem a nú a confrangedora realidade portuguesa no plano do aproveitamento escolar no ensino superior. Em resultado, o nosso estudante ‘representativo’ reprova demais, passa tempo demais na escola, e sai - quando sai - debilitado no plano da intensividade da formação que (supostamente) adquiriu. Para cúmulo, o drama das prescrições nunca foi devidamente resolvido e subsistem largos milhares de casos anedóticos protagonizados por autênticos ‘profissionais da reprovação’.
A questão do insucesso escolar nas universidades é, para o professorado em geral, um problema de preguiças, desleixos e irresponsabilidades cuja origem tem nos estudantes os únicos culpados. Afinal, ‘já são grandinhos, maiores e vacinados’ – invariavelmente, mais ou menos adjectivada, a frase ouve-se nas reuniões de docentes.
Contudo, o passar dos anos tornou-me mais convicto de que os níveis de insucesso escolar nas nossas universidades são, em larga medida, o reflexo indirecto e a resultante mais visível do modelo de sistema de ensino superior que temos.
Em rigor, os estímulos à progressão nas carreiras da docência universitária em nada dependem da qualidade da formação dos alunos, do tempo que com eles se despenda, do cuidado tido e evidenciado na preparação de aulas ou da disponibilidade dos professores para orientar o estudo e a aprendizagem fora dos tempos lectivos. Pelo contrário, esses estímulos privilegiam exclusivamente o investimento de tempo e recursos na actividade de ‘investigação científica’ – tantas vezes uma figura de estilo sonante que escamoteia a paupérrima qualidade de muita da dita ‘investigação’ que se vai fazendo – em claro detrimento do empenho dos professores nas actividades de natureza pedagógica.
Na verdade, para o professorado em geral – e sem ousar descurar as muitas excepções que por todas as escolas se sabe que vão existindo – os estudantes são uma perda de tempo, um estorvo incompatível com a obtenção de estatuto profissional ou um salário melhor. Dão sempre demasiado trabalho. A carga com aulas e correcções de exames é, pois claro, pesadíssima. São anunciados horários de atendimento na média da hora-e-meia por semana, para 50 ou 500 alunos tanto faz, mas estes não são estimulados a comparecer a reuniões de trabalho e acompanhamento com os seus mestres. Provas orais, que deveriam ser obrigatórias, são erradicadas dos regulamentos ou substituídas por expeditas ‘orais escritas’. Como se não bastasse, só num número muito reduzido de escolas se promove uma articulação minimamente cuidada dos conteúdos programáticos das várias disciplinas. As revisões de planos curriculares, resultantes de refregas intestinas entre capelas e interesses pessoais secundaríssimos, são operadas na base de jogos de pura semântica na designação de disciplinas.
Ao arrepio de tudo isto, a ‘Declaração de Bolonha’ estabeleceu como um dos princípios fundamentais da reforma do sistema de ensino superior na Europa o primado do ensino centrado no estudante. Acatando directrizes ministeriais, ainda a tempo de iniciar o ano lectivo de 2006-2007 à luz de Bolonha, a quase totalidade das escolas portuguesas de ensino superior apressaram-se a adaptar os planos curriculares das antigas licenciaturas de 4 e 5 anos a novas licenciaturas bi-etápicas, ditas ‘licenciaturas’ (em rigor verdadeiros bacharelatos) e ‘mestrados’ (na verdade, as antigas licenciaturas) de Bolonha.
Com mais ou menos balbúrdia ao barulho e entre mortos e feridos, o professorado de cada escola lá baralhou e voltou a dar cartas na reconstrução de novos planos curriculares e grelhas de disciplinas, regras de precedência, unidades de crédito e reformulação de regimes de avaliação. Em Setembro passado, a meu ver avisadamente, uma escola da Universidade do Porto clamava pela declaração do estado de calamidade pública no tocante à implementação do ‘processo de Bolonha’.
Bolonha, novos métodos de ensino, centrados na aprendizagem e na aquisição de competências pelo aluno? Pois bem, eis o resultado geral: menos aulas, mais papelada para leitura e trabalho de casa, mais avisos à navegação do género ‘estudem, que vou ali e já venho’. Em suma: ainda menos tempo para dedicar à missão de ensinar. A apressada instituição de dispositivos de ‘estudo orientado’, de ‘discussão de casos’ ou de ‘tutorias’ roça o risível quando cotejada com o saber, a experiência e a prática das melhores escolas por esse mundo fora.
Sabidamente, os portugueses são mestres nas artes da dissimulação e do fazer de modo a parecer que é. Por tudo isto, nada me surpreende que, sempre que as conversas com os amigos resvalam para que se fale do futuro dos filhos, o desabafo se tenha generalizado: ‘Só se não puder é que os meus filhos não estudarão no estrangeiro’.
Num dos meus últimos escritos que lavrei nesta coluna de opinião, escrevia: "A missão fundamental do sistema de ensino superior, que deveria traduzir-se na formação de pessoas altamente qualificadas, está subvertida por um sistema em que todos os incentivos parecem apontar na direcção errada. É claro que Bolonha pode vir a ser uma ‘oportunidade’. Será que o será algum dia, sem se mexer radicalmente no sistema?"
De facto, a nossa atávica propensão para soluções baseadas no facilitismo e na ‘lei do menor esforço’ continua a impedir que o país consiga congregar condições propícias a um desenvolvimento sólido e sustentado. Bolonha seria uma oportunidade. Temo, agora, que já se tenha transformado em mais uma ameaça que tenha vindo para ficar. Nestas condições, o mais importante é não desistirmos.
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Ricardo Cruz escreveu o presente artigo de opinião que foi publicado na edição de ontem [dia 16] do «Jornal de Negócios».
sábado, fevereiro 17, 2007
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