sexta-feira, fevereiro 16, 2007

«Flexi-professores a 4 euros... mas com prémio!», artigo de opinião de Santana Castilho

Acomparação entre o estado da educação nacional no final século XIX e as tentativas para a reformar, estrategicamente erradas, e idêntica atitude nos tempos que correm é um exercício possível e interessante, por recurso a críticos de então e de hoje. Muitos rasgos retóricos de literatura da época seriam aplicáveis, "mutatis, mutandis", à situação dos nossos dias. Ferreira Deusdado, eminente professor do Curso Superior de Letras, criticando as reformas da instrução pública de então, escreveu, em 1887, que "o ensino é principalmente o professor" e considerou "inútil e estéril" a intenção reformista que não tivesse isso em conta.
A degradação do estatuto social dos professores é hoje um lugar comum que ninguém contesta. Tem causas múltiplas e naturalmente diversas. Mas dificilmente se descortina alguma que para tal tão fortemente tenha contribuído como a politica deste governo, de ataque gratuito, sistemático e irresponsável à classe. A evidência dos resultados é incontestável: as condições de trabalho são cada vez mais precárias e a profissão está desregulada, sujeita à brutalidade da vertente mais obscura das drásticas leis do mercado, qual seja a exploração da fragilidade dos desempregados para obtenção do lucro fácil. Convidaram-me há dias para falar num encontro de professores. Na assistência estava uma jovem licenciada. Terminou o seu curso há três anos, tantos quantos já levava a procurar emprego. Foi "ama" e caixa num supermercado. Agora ensina inglês a crianças do 1º Ciclo do Ensino Básico, a 4 euros por hora, contratada por recibo verde por uma organização intermediária. Neste contexto, o anunciado prémio pecuniário para o melhor professor, mais do que farisaico e vulgar, é uma afronta à classe. Lástima que já tenha júri! Pena que vá ter candidatos!
Na mesma eloquência politica degradante filiou-se a justificação dada pelo governo e pelo partido que o suporta para inviabilizar o pagamento do subsídio de desemprego aos docentes do ensino superior. O ministro Santos Silva foi a voz da repugnante frieza e manha do executivo e os seus dotes retóricos não foram suficientes para cobrir a intenção deplorável do PS: usar a situação como arma de arremesso e moeda de troca na negociação com os sindicatos sobre a reforma da administração pública. Ninguém entende que em 2000, quando se garantiu, e bem, protecção no desemprego para os professores dos ensinos básico e secundário e para os educadores de infância, se tenha deixado de fora os docentes do ensino superior. Ninguém entende que, depois de decorridos quatro anos sobre a pronuncia do Tribunal Constitucional para que a situação fosse regulamentada, 11.000 professores do ensino superior, com contratos precários, continuem sem uma das garantias mais elementares consagradas no Direito europeu. Ninguém entende que se transformem em papel sem valor garantias recentes de Mariano Gago sobre a matéria. É demasiado evidente, é demasiado deplorável.
De 1995 a 2005, a taxa de insucesso no final do secundário passou de 29,6 por cento para 50,8. A taxa global de escolarização indicia retrocesso. Os portugueses são o povo, em toda a Europa, que menos valoriza a necessidade de formação ao longo da vida. Dos portugueses activos, 60 por cento têm apenas o 2º ciclo de formação básica ou menos. De todos os nossos jovens, só 65 por cento permanecem no sistema de ensino. Sem pudor, não contente com a degradação que já provocou, a ministra avança com a intenção de entregar todas as disciplinas do 2º ciclo do ensino básico, da matemática à música, das línguas à educação física, a um só docente. Apesar disto, fecham-se escolas aos milhares, temos cerca de 40.000 professores no desemprego e o governo economizou, no ano passado, 125 milhões de euros com os salários dos que estavam em funções. A incongruência e a mistificação atingiram níveis impensáveis: com escassos dias de premeio, ora se invoca a qualificação dos portugueses como desígnio nacional, ora se exclui das actividades nucleares do Estado a Educação e se aliciam os chineses com a baixa qualificação e a subserviência dos indígenas.
Os espíritos pobres que tomaram o leme deste país têm vindo, de slogan em slogan (choque tecnológico, simplex, flexi-segurança, etc.) a dizer aos portugueses e aos professores em particular: aguentem em nome do combate ao défice; acreditem na esquerda moderna. É tempo de lhes dizer que não queremos regressar ao século XIX.
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[Manuel Henrique] Santana Castilho é professor na Escola Superior de Educação de Santarém. O presente artigo de opinião de Santana Castilho foi publicado na edição do passado domingo (dia 11) do jornal «Público», anteriormente já havíamos publicado um outro artigo do mesmo autor: «Passo a passo, [a "Esquerda moderna" vai] centralizando e castrando».

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