quinta-feira, outubro 12, 2006

«A Educação para lá do “desenvolvimento”»

Hoje, a Educação, [estando] cada vez mais subordinada à racionalidade económica dominante, ocupa um lugar central nas políticas sociais, mas [no entanto] o optimismo deu lugar à frustração e à incerteza.
As mutações económicas e sociais do último quartel do século XX amplificaram o sentimento de desencanto com a escola, afectando de forma particular a juventude, para quem o prolongamento dos percursos escolares, concomitante com a desvalorização dos diplomas e a rarefação dos empregos, transformou os sistemas educativos em gigantescos parques de estacionamento para a população juvenil. A retórica sobre a “educação ao longo da vida” e o crescimento quantitativo das ofertas de formação (de carácter recorrente e profissional) passaram a funcionar como uma máquina de distribuição de ilusões: o investimento individual na formação e o mérito de cada um seriam os garantes da sua “empregabilidade” e de um futuro de sucesso.

A incerteza que pesa sobre o conjunto dos assalariados repercute-se, por um lado, no aumento dos níveis de tolerância à injustiça e, por outro lado, no aumento dos níveis de sofrimento que afectam os jovens (a incerteza impede que se façam planos para o futuro), os que trabalham (sujeitos a ritmos e níveis de exploração que recordam os primórdios da industrialização) e a legião de assalariados condenados a uma inactividade forçada, por via do desemprego (“solução” que viabiliza o “emagrecimento” das empresas e o seu aumento de competitividade). A educação não é um instrumento para viver, mas sim uma maneira de construir a vida. Por isso, o pensamento e as práticas educativas não podem dissociar-se de escolhas que, no contexto actual, se orientam para um projecto social baseado no «ter» ou no «ser». Como escreveu Ivan Illich (1971) cada homem precisa de saber se opta pela riqueza material e por possuir cada vez mais objectos ou se prefere a liberdade e a autonomia de os utilizar.

Privilegiar o «ter» conduz a limitar de modo drástico o nosso campo de autonomia e de realização humana. A organização social subordinada à lógica de produção de mercadorias desvaloriza e elimina tudo o que, sendo do domínio da auto-suficiência, da solidariedade desinteressada e da expressão de si, põe em causa o poder do dinheiro e as várias formas de dominação que o acompanham. Poderá esta verificação inspirar-nos um outro vocabulário para pensar a Educação?

A construção histórica das modernas sociedades industriais, ou seja, das sociedades capitalistas (sob a forma de mercado ou de capitalismo de Estado), tem como cerne a transformação de tudo em mercadorias (a começar pelo trabalho humano), visando a acumulação de capital, processo baseado na exploração do trabalho assalariado, com base na apropriação da «mais valia». Os ideais do triunfo da Razão e do Progresso, que caracterizam o pensamento iluminista constituem os principais referentes de uma ideologia do desenvolvimento, fundada numa confiança cega nas potencialidades de a Ciência e a Técnica se traduzirem, através das suas aplicações, em níveis crescentes de produção de bens e, idealmente, de um contínuo acréscimo de bem estar para o conjunto da Humanidade. Esta ideia de progresso linear, comum ao mundo da biologia e ao mundo da economia, é aceite de forma convergente por figuras tão distintas como Augusto Compte, [Charles] Darwin e [Karl] Marx. No elogio fúnebre que fez a Marx, o seu amigo [Friedrich] Engels não encontrou melhor forma de o elogiar do que compará-lo a Darwin: um teria descoberto a lei do desenvolvimento da natureza (a evolução das espécies), o outro a lei do desenvolvimento da História Humana. No início dos anos [19]70, a coincidência do primeiro “choque petrolífero” com as crises de produtividade e de governabilidade das sociedades capitalistas (a Ocidente e a Leste) marcou o fim de um ciclo marcado pelas “ilusões do progresso” (como lhe chamou Raymond Aron) e pela tentativa de criação de “sociedades da abundância”, em que desapareceria o fosso que separava os países “desenvolvidos” dos países periféricos, marcados pelo “subdesenvolvimento”.

A falência dos «Estados de Bem Estar» é coincidente com um aumento constante da capacidade de produzir riqueza, com base em acréscimos de produtividade, resultantes de novas formas de organização do trabalho e de incorporação do conhecimento científico e técnico nos processos de produção. Os acréscimos de produtividade, com o enfraquecimento dos movimentos sociais e a mutação das organizações sindicais, traduziram-se num acréscimo da exploração do trabalho (os trabalhadores mais produtivos são, obviamente, os mais explorados), acompanhado de um aprofundamento das desigualdades.

O desenvolvimento foi sujeito, enquanto ideologia, a uma forte erosão, como resultado de críticas que, embora divergentes nos seus fundamentos, convergiram nos seus efeitos pela razão simples de que passaram a existir evidências factuais que tornavam impossível a visão dominante até aos anos [19]70. O desenvolvimento como sistema conceptual e como modelo de referência para pensar e organizar a vida social não foi, no essencial, afectado. A sua sobrevivência foi acompanhada e favorecida por metamorfoses de carácter semântico que, adjectivando o conceito, alimentaram a ilusão de que “um outro” desenvolvimento é possível. Trata-se do mesmo tipo de mistificação que consiste em imaginar que “uma outra globalização” é possível sem que seja posto em causa de forma radical o sistema de exploração do trabalho humano.

Artigo de opinião de Rui Canário [professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa], publicado originalmente no semanário «Notícias da Amadora» e também [em duas partes] no blogue «Xatoo».

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