quarta-feira, novembro 08, 2006

«Declaração de Bolonha – Educação: de direito de cidadania a mercadoria», por João Medeiros (economista e professor do Ensino Secundário)

A última década do século XX e a primeira do século XXI constituem o cenário para o regresso da Educação ao centro do debate público. A Educação, ao mesmo tempo que é alvo da crítica de todos os matizes ideológicos, passa por transformações da sua própria identidade histórica: de direito de cidadania parece transformar-se a cada dia num bem privado ou mercantil, isto é, moeda de troca entre indivíduos, entre indivíduos e organizações comerciais nacionais ou transnacionais, e mesmo entre nações nas suas transacções comerciais.
A recuperação capitalista está a fazer do campo educacional a mais nova fronteira de expansão do capital na dita Sociedade do Conhecimento. Não surpreende, pois, que a mercantilização dos serviços (antes, direitos) educacionais esteja há quase uma década na ordem do dia da AGCS/OMC.


Referem-se alguns dos sintomas dessa profunda transformação identitária da educação em curso:

1) a estagnação ou redução do financiamento público;

2) a grande expansão da educação privada lato e stricto sensu (nesse caso, a começar pela legalização das instituições educacionais com fins lucrativos) e a adopção de claros processos de mercantilização dos serviços;

3) a crescente privatização interna das instituições públicas via venda de serviços, consultorias e outros mecanismos, entre os quais se destacam as fundações privadas de apoio institucional;

4) o surgimento de novos modelos empresariais provedores de serviços educacionais com fins lucrativos orientados pelo mercado, as universidades privadas, escolas e universidades virtuais, os consórcios de instituições públicas e empresas privadas, as escolas autogeridas e o franchising educacional;

5) os novos sistemas de coordenação, avaliação e controlo que, estimulando a competição de tipo empresarial, submetem os subsistemas de ensino, inclusive os públicos, aos mecanismos e interesses do mercado e matam a autonomia da instituição escolar;

6) a indústria dos dispositivos pedagógicos extra-escolares (softwares educativos, entre outros) para o crescimento da competitividade escolar, o mercado de produtos para-escolares e de serviços especializados, que incluem empresas prestadoras de serviços psicopedagógicos, de acompanhamento dos trabalhos de casa, de aulas particulares de recuperação e reforço.

Um grande arsenal de conceitos-chave, travestido em grande medida por uma nova semântica, tem sido utilizado para alimentar e viabilizar, quer as transformações macroeconómicas e estruturais de fundo, quer as do campo educacional.

Atente-se na estranha linguagem, cujo vocabulário, aparentemente surgido do nada, está em todas as bocas: “mundialização” e “flexibilidade”; “empregabilidade” e “exclusão”; “nova economia” e “tolerância zero”; “comunitarismo”, “multiculturalismo” e os seus parentes “pós-moderno”, “etnicidade”, “minoria”, “identidade”, “fragmentação”, etc.

Note-se, no entanto,
a surpreendente ausência de termos como “capitalismo”, “classe”, “exploração”, “dominação”, “desigualdade”.

Na área da Educação, como de resto em todo o campo social, os conceitos que subjazem a essa cruzada mercantilizadora empobrecem o discurso teórico e político-ideológico. O debate, posto nestes termos, impõe um campo duplamente favorável ao liberalismo porque, por um lado, permite uma mais fácil desqualificação e deslocamento de um dos termos essenciais do debate: o público. Contra ele são lançadas as pechas de “ineficiente”, “cobrador de impostos” e “mau prestador de serviços à população”, além de “burocrático”, “corrupto”, “opressor”. Em favor do privado idealizam-se virtudes como as de espaço de “liberdade individual”, de “criação”, de “imaginação” e de “dinamismo”.

Esquece-se que o Estado português tem sido facilmente desqualificável, porque se tornou um Estado privatizado. Um Estado que arrecada do mundo do trabalho e transfere recursos para o sector financeiro, gastando mais com o pagamento dos juros da dívida do que com a educação e a saúde. Um Estado que paga taxas de juros elevadíssimas ao capital financeiro, mas remunera pessimamente os seus professores e trabalhadores do sector de saúde pública, aqueles mesmos que prestam serviços à massa da população.

A oposição público vs privado reduziria o debate a dois termos que não seriam necessariamente contraditórios:
o público não seria um pólo, mas, sim, um campo de disputa, dominado hoje pelos interesses privados. O privado também não seria a esfera dos indivíduos, mas dos interesses mercantis – como se vê nos processos de privatização, que não constituíram processos de “desestatização” em favor dos indivíduos, mas das grandes empresas privadas, aquelas que dominam o mercado. Nesse esquema, o pólo oposto ao público é a negação da cidadania, é o reino do mercado, aquele que, negando os direitos, nega a cidadania e o indivíduo como sujeito de direitos. A conclusão mais óbvia e definitiva é que a polarização essencial não se dá entre o público e o privado, mas entre o público e o mercantil.

Políticas conservadoras, “direitistas”, que se apresentam frequentemente como radicais e como soluções necessárias para um sistema educativo que não responderia às necessidades do povo: é este conservadorismo que avança e toma o lugar central, que toma conta de largos segmentos governamentais, e ainda é apropriado por grupos dos quais não se esperaria que o fizessem.

No rol desses conceitos-chave, e
para se entender a guinada conservadora e mercantil que assola o campo educativo, surgem os “mercados”, “padrões”, “prestação de contas” (accountability), “tradição”, “Deus”, além de numerosos outros, com valência emocional diversa, que incluem os de “democracia”, “liberdade”, “escolha”, “moralidade”, “família” e “cultura”. A estes ainda se poderia acrescentar: “quase-mercado educativo”, “forças de mercado”, “decisões privadas”, “regulação”, “regulação pela oferta e pela procura”, “desregulação”, “controlo”, “ranking”, “competências”, “qualidade total”, “acreditação”, “bem privado” vs “bem público”, “equidade social”, “livre escolha escolar”, “escolas autogeridas”, “organizações sociais”, “organizações públicas não-estatais”, “produtos para-escolares”, “capitalismo académico”, etc.

Os “Mestres de Bolonha”

Os professores actuais serão prejudicados, fatalmente, em concurso, perante a manutenção de seu diploma como “licenciatura”, quando se quiserem candidatar a outro posto em concorrência com os candidatos com “mestrado segundo o processo de Bolonha”. Os professores actuais com mestrado, como tem sido conferido até agora, irão também sofrer a concorrência, pois não é verosímil que tenhamos “mestrados categoria A” e “mestrados categoria B”.

A maneira atabalhoada como o “processo de Bolonha” está a ser implementado, tem a ver com a pressa do Governo em despachar o assunto, por um lado, mas tem também a ver com uma atitude de consentimento das cúpulas sindicais, que estão absolutamente deliciadas com a situação... mas porquê?

Carlos Chagas, da FENEI, por exemplo, tem atrás de si um grupo de professores universitários das universidades privadas, os quais estavam em sério risco de desemprego, visto que houve uma multiplicação descontrolada de licenciaturas, sem que houvesse de facto necessidade de tais cursos, ou de tantos “locais” conferindo os mesmos diplomas. Terão agora a “clientela forçada” de professores a meio da carreira, que vão à pressa tirar mestrados ou “equiparações a...” (uma venda de diploma disfarçada).

O conjunto dos “sindicalistas profissionais” da FNE e da FENPROF não têm que se preocupar com as suas próprias colocações, porque “assinaram o cargo para a vida inteira” ou seja, são sistematicamente candidatos e eleitos, desde há decénios alguns, e contam sê-lo até à reforma. Além disso, esperam assim ter o “prémio” de mais uns tostões, pelo facto de terem cedido vergonhosamente neste campo...

Esta enorme confusão está a fazer-se à custa das gerações futuras, principalmente... mas não só, pois, como já vimos, os professores que o já são, ficarão discriminados perante os portadores de “mestrado Bolonha”, se não conseguirem uma real equiparação (não apenas administrativa, mas com título académico) da sua licenciatura a “mestre” (tenho quase a certeza de que estes não vão ficar titulares).

Do ponto de vista da qualidade da formação inicial é uma fraude. No Governo Santana Lopes foi tornado difícil (porque não remunerado) o estágio para aceder à profissionalização, e o Governo Sócrates reforçou e praticamente acabou com esse formato de profissionalização, com actividade profissional nas escolas. A formação inicial “tradicional”, ou seja, com um ano de estágio obrigatório para se ter a licenciatura pedagógica, habilitando ao ensino do básico e/ou secundário, tinha o mérito de se desenrolar quase toda num estabelecimento de ensino em que o estagiário tinha obrigações semelhantes aos outros colegas, porém apoiado por um orientador de estágio, pertencente ao quadro da escola.

Agora,
os “mestres de Bolonha” vão sair com uma formação essencialmente teórica de cinco anos, e irão dar aulas sem qualquer preparação ou prática acompanhada por professor experiente que esteja especificamente encarregue de acompanhá-lo.

Como se pode ver, além de criar situações difíceis por colocar injustamente em competição sectores de docentes uns contra os outros (visto poderem ter formações semelhantes, com designação de grau académico diferente) está também a baixar o nível de qualificação inicial. Essa descida do nível é disfarçada com uma cosmética, a de chamar “mestres” às novas fornadas de candidatos à carreira de professor.

Sem comentários: