Contra "automatismos de esquerda", ainda alimentei algumas ilusões sobre o processo de Bolonha e sobre a capacidade de inovação do Governo na área universitária. Lamento dizer que as [minhas] ilusões se foram. Quem anda metido nisto há vinte anos e se meteu a fundo, agora, na reestruturação, não pode deixar de ver que o processo actual conduz a 3 coisas: massificação, mercantilização e proletarização.
Massificar não significa necessariamente democratizar. Portugal precisa, de facto, de um acesso democrático ao Ensino Superior e precisa - ao contrário do que muitos dizem - de muito mais gente com formação superior. O que está a ser feito não é isso, mas sim tornar o Ensino Superior, incluíndo o nível pós-graduado, numa fábrica de encher chouriços. Obter mais diplomados não tem que significar obter diplomados da treta.
Mercantilizar não significa necessariamente (e é uma pena) introduzir mecanismos de concorrência que possam trazer mais qualidade. No nosso caso significa simplesmente vender "produtos" aos "clientes" [estudantes] que de qualquer modo os "consomem" - os tais diplomas -, numa lógica semelhante à do consumo de massas.
Por fim, proletarizar significa, neste caso, fazer toda a mudança do sistema (repito: massificadora e mercantilizadora) sem qualquer revisão do estatuto da carreira docente universitária. Isto resulta em sobre-exploração do trabalho dos docentes, na continuação da estagnação do corpo docente, e no surgimento de condições de trabalho que impedem a investigação e o pensamento crítico.
A restruturação actual do Ensino Universitário é um monumental bluff e uma hábil operação de propaganda. Basta ver como todas as virtudes [do processo] de Bolonha foram deitadas para o caixote do lixo, quer pela resistência das culturas burocráticas dos serviços administrativos, num extremo da escala, quer pela pressão mercadorizadora exercida pelos órgãos dirigentes e pelo Orçamento de Estado, no outro extremo.
É verdade que nunca tivemos Universidade a sério em Portugal. E a pouca que tivemos - a minha faculdade era disso exemplo - só se aguentava com qualidade enquanto fosse pequena e vocacionada para a excelência. Elitista? Sem dúvida. Mas a alternativa a esse elitismo não tem que ser a transformação da Universidade num imenso Politécnico, na menos má das hipóteses, ou num prestador de serviços a empresas, na pior.
Já vimos a que conduziram processos anteriores de mercadorização e proletarização: o desastre monumental (salvo raríssimas excepções) do Ensino Superior privado. O Ensino [Superior] Público segue agora o mesmo caminho, acrescentando a "massificação-com-propinas" do corpo discente, perdão, dos "clientes".
Que tudo isto esteja a ser feito com a retórica [do processo] de Bolonha - que apontaria para um Ensino [Superior] Moderno - é no mínimo de um atroz cinismo. Vão a certas faculdades e vejam como os aspectos pedagógicos e científicos [do processo] de Bolonha foram abortados e se apostou nos seus aspectos mercantilizadores e anti-trabalhistas. [O processo de Bolonha] Tornou-se no cavalo de Tróia para uma outra coisa bem diferente e cujos contornos assustadores ainda nem nos bateram à porta a sério. (E como eu detesto ter que escrever coisas que soam a pessimismo imobilista à moda da Esquerda antiga!)
A Universidade acabou. Chamem-lhe, por favor, outra coisa.
_________________
Miguel Vale de Almeida publicou o presente texto (inicialmente) no seu blogue «Os Tempos que Correm», tendo também sido (posteriormente) transcrito no sítio do SNESup (Sindicato Nacional do Ensino Superior). É doutorado em Antropologia, professor no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa) e director da «Etnográfíca», revista de Antropologia da responsabilidade do Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS) do ISCTE.
terça-feira, novembro 07, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário