E eis que, com o Processo de Bolonha, se pode perguntar: será que vamos introduzir "novas formas pedagógicas" (formas ou fórmulas ou apenas estilos?), no ensino universitário português?Durante muito tempo acostumados ao estilo cartesiano e muito francófono de abordar os conceitos e as relações científicas, poderá questionar-se se a introdução dos modelos do processo de Bolonha, não será uma importação de modelos anglo-saxónicos, em ambiente ainda não preparado para a filosofia anglo-saxónica, da "maneira de ensinar".
Do modelo medieval e conventual à evolução renascentista, passando pelas Luzes e pelos métodos mais modernos do racionalismo, não tivemos, senão muito recentemente, contacto com a forma de ensinar que tem muito do "do it yourself", mais ou menos acompanhado e "tutorizado".
Pode dizer-se que é curta no tempo e reduzida no número de pessoas que dela dispõe, a experiência de montar e liderar um grupo de trabalho virado para a "construção" de análises e explicações e não é grande a nossa prática de ensino com tanta "ocupação" de tempo do professor e sua total disponibilização, a todo o momento, para se encontrar com o grupo e discutir "ensinando", mas também, "conjuntamente descobrindo". E é isso que se impõe, segundo julgamos, nos modelos que agora nos surgem por esta via e que serão considerados como nova ortodoxia pedagógica.
Isto leva-me a pensar, que a adopção do Processo de Bolonha, com todos os méritos que arrasta, sem dúvida, e acreditando na motivação geralmente apresentada para a sua generalização na União Europeia, a maior facilidade de intercomunicação e de transferência de competências entre estados membros, talvez careça de uma preparação intelectual de uma boa parte das elites universitárias e, sem dúvida alguma, uma aprendizagem dos docentes "viciados" no sistema clássico.
São muitas e variadas as questões que se levantam neste tipo de preocupação e que "a nova maneira de ensinar" deixa a descoberto. Não nos propomos, nem saberíamos, abordar todas. Mas há algumas questões de relevo mais imediato, que merecem a nossa consideração neste breve escrito.
A primeira diz respeito ao que se pode denominar uma consequência de natureza dupla e contraditória da adopção do "estilo de Bolonha". Se por um lado a adopção deste envolve a dispensa de alguns docentes, por não poderem, ou não quererem, disponibilizar-se mais do que actualmente, o que já está em preparação ou mesmo em execução em muitas escolas, parece poder afirmar-se que, globalmente, as "novas formas de ensinar" conduzem à necessidade de uma maior entrega do professor à escola e ao ensino, tudo se traduzindo porventura no aumento do número de horas de trabalho efectivo na escola e, portanto, a alguma viragem na natureza do professor clássico e à necessidade de contratação de "mais professores".
Em particular, parece óbvio que o chamado (talvez injustamente) "turbo-professor", não terá tanta procura como até aqui. Em balanço não parece haver dúvida de que as horas de dedicação tenderão a aumentar por parte dos professores que integram o quadro. E a busca de uma gestão "racional", contratando tantos quantos necessários professores "à hora" a fim de reduzir os custos, não poderá continuar a ser considerada "racional".
Uma segunda questão diz respeito à consagração do modelo do que se chamou de "aulas de tutoria", onde a forma de actuar, pedagogicamente, é bastante diferente da forma clássica da "aula teórica", mas também da "aula prática". O professor integra-se num grupo de trabalho e com ele, liderando-o e coordenando as suas tarefas e a sua interacção, vai acompanhando o grupo, até à "produção", por todos, de um produto final: os "trabalhos" das aulas de "tutoria".
E tudo isso está interligado com uma nova forma de "classificar" o aluno, sendo a classificação "permanente" e baseada, muito mais do que até agora, na análise (contacto) com o aluno, observando a sua "performance" e a sua atitude no "ataque à questão" de descobrir respostas e soluções para os problemas que lhe vão surgindo. O papel e responsabilidade do professor aumenta significativamente neste contexto.
Talvez mais impressionante, e como terceira questão, é a alteração exigida na mentalidade e na percepção dos alunos quanto às matérias que lhes cabe estudar. A clássica observação "o professor não deu esta matéria", observação que se louvava ou nas folhas publicadas, ou nos apontamentos tirados das aulas, ou ainda em capítulos de livros dados na bibliografia ou outras fontes dadas na cadeira, não poderá ser invocada. A matéria, tal como até aqui, será objecto de um programa aprovado oficialmente e publicamente conhecido. Mas não há fronteiras estritas no que toca ao âmbito de cada tema que tal programa enuncie. Em certa medida é o contacto com o professor que, a todo o tempo, poderá ajudar a "procurar" os aprofundamentos "necessários" e "aceitáveis" de cada tema. Poderá mesmo imaginar-se que, em muitos casos haverá uma negociação tácita sobre os limites de âmbito de cada tema. O que tal implica é que o diálogo entre professor e aluno será muito superior ao actual.
Em quarto lugar, penso que a nova divisão de aulas tipo, em teóricas, práticas e de tutoria, levanta uma questão fundamental. Que tipo de professor deverá estar na aula teórica, na prática e na de tutoria. Também não parece haver dúvida que isto levanta a questão de que cada matéria, cada "cadeira", cada "disciplina", deverá ser assegurada por "uma equipa de professores". E se era frequente, hoje, o mesmo professor dar a totalidade das aulas de uma disciplina, neste novo cenário tudo parece indicar que deverá haver especialização, sendo o professor das aulas de tutoria, muito mais disponível que o clássico professor das aulas teóricas. Repare-se que não se trata de, apenas, como em algumas aulas práticas, acompanhar os alunos na elaboração de trabalhos práticos distribuídos. Parece pretender-se mais. O professor lança temas como desafio aos alunos, em pequenos grupos e, com eles, investigando bibliograficamente, via "internet" ou em fontes de todo o tipo, procura chegar a conclusões e portanto a autênticas "pequenas teses" sobre os temas objecto do desafio.
Daqui resulta a inevitável pergunta: será que os nossos professores estão preparados para este tipo ou esta "nova forma de ensinar"? Devo dizer que penso mesmo que a questão se pode colocar não apenas relativamente a Portugal. E não estamos apenas a referir-nos à preparação de prática pedagógica dos professores. Estou mesmo a referir-me à questão de o seu tipo de vida profissional (multifunções!) poder manter-se como actualmente o conhecemos.
Em duas pequenas experiências de tipo "pós graduação", vividas nos EUA e Reino Unido, e onde fui envolvido em metodologia pedagógica que se me afigura semelhante, recordo ter tirado a conclusão, já nessa altura, de que era mesmo diferente, a "maneira" de ensinar a que estava assistindo e em que participava.
Então será que temos tudo preparado para um programa de treino e aprendizagem dos próprios professores universitários mais clássicos, para este tipo de actuação?
Esta é apenas a ponta de um icebergue que terá por baixo de si questões ainda mais preocupantes, como sejam: o que significa uma licenciatura de três anos e que relação têm com os antigos bacharelatos? Que ligação têm os mestrados previstos com as licenciaturas enunciadas? Como vai o mercado reagir no que toca à procura de licenciados e de mestres? Será que o doutoramento é, não apenas um grau e uma fase da carreira docente, mas também, visto pelo mercado, uma graduação suplementar e desejável (pagável) de um licenciado ou mestre que se pretende mais "competente" e portanto distinguido pela procura do mercado como tal?
Ou será que as empresas, como já vem acontecendo, suprirão o que achem ser algumas insuficiências das licenciaturas, (o que poderá acentuar-se com as próximas licenciaturas de três anos), com o desenvolvimento de formação e mesmo docência académica no seio das próprias empresas, criando-se assim, as muito faladas e desafiantes "escolas empresariais", nas quais aparentemente, "quem manda são os gestores e não a administração pública". Em qualquer caso tenta-se assim poupar ordenados mais altos resultantes da maior graduação universitária.
Alguns defensores do sistema acham poder fazer-se, aí, e por essa via, o desejável casamento das preparações "oficiais" com as reconhecidas "necessidades do mercado". Note-se que nem as escolas públicas nem as privadas têm, como noutros mundos, os conselhos consultivos, ou conselhos gerais que bebem no domínio empresarial e institucional as ideias que depois trazem à escola por esta via. Pelo menos não os têm com a frequência e experiência que encontramos noutros sistemas de ensino.
Não sendo contrário ao esforço que o País quer fazer em termos de acompanhar a evolução europeia para o Processo de Bolonha, sempre me atreverei a dizer que me preocupa o não ver qualquer manifestação da necessidade de preparação e adaptação global do nosso escol docente às novas exigências a que estaremos submetidos.
Temos porém a intuição de que a "escolha" de algumas escolas para partilhar uma parceria com escolas estrangeiras de prestígio incontestável, poderá ter sido uma forma de promover a familiarização com novos sistemas de ensino, mais próximas da modernidade desejável. É uma experiência que só aproveitará a alguns.
Mas também não se entende o que se passa no mundo actual, "na nossa casa", que não parece reconhecer a inevitabilidade dum sistema misto, em que o ensino privado complete, e compita com um ensino superior público. Este, hoje orçamentalmente financiado, compete com armas desiguais, no plano dos preços dos serviços que presta, escudando-se no pressuposto, (nem em todos os casos verificado), de que a qualidade supera a de todos os seus concorrentes privados e de que é ao Estado, guardião do "welfare", que cabe prestar tais serviços.
Aí as experiências de "escolas empresariais", podem trazer surpresas inesperadas, quer a uns quer a outros, surpresas que convirá antecipar e que, em qualquer caso, influenciarão a forma de estruturação e de concepção pedagógica de todas as escolas públicas e privadas, agora e no futuro.
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