Dizem os jornais de hoje que o Governo quer levar o Ensino Superior ao último debate do ano no Parlamento. Quem poderá ter pensado que um primeiro-ministro socialista poderia vir falar de Educação pública, de políticas de igualdade para combater o insucesso, de universalização do acesso como condição da democracia, do reforço da participação na gestão, da abertura das Universidades a novos públicos, desengane-se. Este Governo não tem nada de socialista e o debate de hoje é para anunciar um funeral: a ideia de Educação pública como direito de cidadania garantido pelo Estado deve ser enterrada. Sócrates vem falar de outra coisa: da Educação S.A..
Se houve um tempo em que à social-democracia se associou a ideia de um compromisso entre capitalismo e democracia que, através dos direitos sociais, garantisse patamares mínimos de igualdade que dessem conteúdo à cidadania (o direito à Educação, à Saúde, a Segurança Social pública, etc.), esse tempo acabou. A suposta "esquerda moderna" tem hoje outro projecto, que pressupõe a destruição do Estado Social em nome da adaptação às realidades do capitalismo globalizado. Esse projecto une todo o campo do situacionismo que desistiu de construir uma sociedade mais justa. O neoliberalismo é a prática política desse campo e [José] Sócrates é hoje o seu protagonista mais cumpridor.
O Ensino Superior é uma das áreas em que tal programa é evidente. Sob a retórica tecnocrática em torno da inovação tecnológica, através do discurso gestionário sobre a necessidade de tornar "eficazes" as instituições, com a assunção elitista de que a democratização está feita ou é impossível, o Governo vai aplicando afoitamente a receita neoliberal à Educação.
Os exemplos mais recentes são gritantes: cortes orçamentais inéditos no financiamento (superiores a 6%, mais a fatia de 7,5% por conta dos descontos para a Caixa Geral de Aposentações); desqualificação da formação reduzindo as licenciaturas a um ciclo de três anos (através de Bolonha); apelos à substituição da gestão democrática (tão "ineficaz", tão "causadora de ruído", tão "morosa"...) por modelos «managerialistas»; despedimento de docentes (centenas de professores têm vindo e virão para a rua este ano); «bolseirização» da investigação sem criação de verdadeiras carreiras e condições para que ela se desenvolva; continuação da actualização do valor das propinas que ultrapassa já os 900 euros...
De facto, se a implementação do processo de Bolonha não tivesse tornado clara a agenda liberal para o Ensino Superior, o anúncio feito esta semana por Mariano Gago, segundo o qual o Governo está já a negociar com entidades bancárias a criação de um sistema de empréstimos para que os estudantes paguem a sua formação, não deixa dúvidas nenhumas. O que está em causa é grave. Já não se trata apenas de sermos "um dos países da OCDE que menos investe" nesta área (como reconhece o próprio relatório). Já não se trata só de substituir o financiamento público através dos impostos - em que quem é mais rico paga mais - por um financiamento directo socialmente injusto através das propinas. Trata-se de eliminar completamente a própria ideia de solidariedade intergeracional que é fundadora de uma responsabilidade pública. O que se pretende é dizer, de uma vez por todas, que a Educação não é um direito: quem quer Educação tem de pagar directamente por ela, nem que seja mais tarde, através de um empréstimo que será pago (com juros) quando a pessoa trabalhar.
O relatório da OCDE, divulgado no passado dia 14, insere-se exactamente nesta linha, quando recomenda a transformação das instituições de ensino superior em fundações financiadas parcialmente pelo Estado, mas geridas como sector privado, em que os professores e trabalhadores não tenham vínculo ao Estado e deixem de ser funcionários públicos.
Estas medidas são todo um programa, são todo um projecto de sociedade: as escolas como empresas, os estudantes como clientes, os professores e funcionários como empregados de uma empresa que deve, no limite, assegurar o seu financiamento e (porque não?) gerar lucro.
A Educação S.A. é só mais uma vertente deste projecto que está em marcha e que precisa de ser derrotado pela crítica e pela mobilização. Desde logo, em nome do ensino superior público. Mas também, obviamente, em nome de uma política que seja socialista.
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José Soeiro é dirigente dos Jovens do Bloco de Esquerda e membro da Mesa Nacional do mesmo partido.
O presente artigo de opinião de José Soeiro foi publicado no portal Esquerda.net, aconselhando-se também a leitura de um seu anterior artigo «A Educação como privilégio? (Reflexões sobre o movimento dos estudantes do Ensino Superior)», publicado na revista da UDP, «A Comuna», nº 3, de Novembro de 2003.
quinta-feira, dezembro 21, 2006
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