quinta-feira, dezembro 14, 2006

«O mistério do Ministério sem Ministro», artigo de opinião de João Teixeira Lopes no "Público"

Parece que temos um Ministério [da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior] esquizofrénico: generoso no que à Ciência diz respeito, profundamente hostil face ao Ensino Superior e aos seus agentes. É caso para dizer que o Ministro [Mariano Gago] apenas se reconhece e investe em parte do seu Ministério, apesar de as realidades serem indissociáveis.
A desordem e a insegurança estão instaladas no Ensino Superior [português]. Politécnicos e Universidades lidam, diariamente, com as questões elementares da [sua] sobrevivência. A total ausência de coordenação na implementação do processo de Bolonha transformou as unidades de Ensino Superior, em particular os seus órgãos de gestão, em monstros administrativos de uma burocracia delirante. Preocupações louváveis, contidas nos documentos iniciáticos, como a da criação de redes científicas internacionais; a mobilidade de docentes e discentes através do desenvolvimento de um sistema de acreditação, certificação e de procedimentos comparáveis (centrado particularmente na definição e implementação de um sistema europeu de transferência de créditos - ECTS), a aprendizagem centrada no aluno para a aquisição de competências numa base interdisciplinar ou, ainda, a aprendizagem ao longo da vida, associando formação académica e formação profissional, estão enterradas no cemitério da realidade.
[O processo de] Bolonha é o pretexto mais que evidente para o desinvestimento [do Estado] no Ensino Superior [público]. Para quem, diariamente, nos brinda com o discurso da qualificação, os cortes brutais nos orçamentos dos Ministérios da Educação e da Ciência e Ensino Superior provam, à saciedade, quão vazia e propagandística é tal retórica. O caso do Ensino Superior afigura-se mesmo dramático. Os cortes reais são superiores a 10 por cento. Os aumentos, tão propalados, registam-se apenas na área da Ciência. No entanto, ao cortar de maneira tão cruel e desajustada no Ensino Politécnico e Universitário, o Governo corta pela raiz as potencialidades da criação de um sólido potencial científico. De facto, é nessas instituições [de Ensino Superior] que, salvo raras excepções, estão concentradas as massas críticas de investigadores. Ao asfixiá-las, mata-se também, de um só golpe, o esforço na Ciência e Tecnologia.
Na verdade, parece que temos um Ministério [da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior] esquizofrénico: generoso no que à Ciência diz respeito, profundamente hostil face ao Ensino Superior e aos seus agentes. É caso para dizer que o Ministro [Mariano Gago] apenas se reconhece e investe em parte do seu Ministério [da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior], apesar de as realidades, como anteriormente referi, serem indissociáveis.
Os resultados estão à vista: há mais de sete [Institutos] Politécnicos que afirmam ter de despedir docentes, mediante tão apertados constrangimentos financeiros. Convém lembrar, que, apesar da promessa do programa de Governo, tais docentes, uma vez despedidos, nem sequer têm direito a subsídio de desemprego! E os Reitores, por seu lado, mostraram já o desejo de aumentar as propinas e de reduzir a percentagem que, da sua cobrança, ia para os serviços sociais e o desporto Universitário. O senhor Ministro (da Ciência...) lava daí as suas mãos.
O argumento de que a quebra orçamental se deve à [falsa] descida do número de alunos [novos nas instituições de Ensino Superior] revela apenas a mediocridade de quem se resigna à fatalidade demográfica e não persiste no esforço de aumentar a taxa de escolarização Universitária. De facto, apenas 35 por cento dos jovens portugueses com idade para estarem no Ensino Superior efectivamente o frequentam. Por outro lado, temos a mais baixa despesa por aluno de Ensino Superior da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] e da União Europeia. Acresce a constatação sociológica, comprovada por estudos recentes, de que apenas 30 por cento da população universitária provém de contextos sociais desfavorecidos, mantendo-se, por isso, uma forte selectividade.
Perante este cenário, é legítimo concluir que anda desaparecido o Ministro do Ensino Superior. É legítimo, igualmente, perguntar ao Governo, e a outros ministros, como [o dos Assuntos Parlamentares] Augusto Santos Silva, o que foi feito da promessa de superar a estupidez do Pacto de Estabilidade, em particular no que diz respeito ao programa português, daí retirando a "obrigação" de contribuir para a redução do défice através da estagnação no Ensino Superior, crítica tantas vezes feita ao anterior Governo de Direita, que, todavia, jamais ousou massacrar, ao nível do actual, o referido Ensino Superior.
Acresce a esta receita de desastre a maquiavélica prática de dividir para reinar. Perante a ameaça de despedimentos e com a rarefacção de recursos, cada unidade de Ensino Superior volta-se para dentro de si própria, num fechamento autofágico, quebrando-se qualquer lógica possível de solidariedade ou de movimento insurgente. Não raras vezes, a obsessão docente centra-se ou na manutenção do seu posto de trabalho (nada a dizer: se for despedido, nem subsídio de desemprego auferirá...), ou na salvaguarda de capelinhas científicas, a cátedra, a cadeira, a "sua" disciplina. O Ministério [da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior] sorri e agradece perante este cenário de balcanização.
A própria ideia, peregrina, de passar a remunerar parte dos docentes através das Unidades de Investigação creditadas ([via] orçamento da Ciência), enquanto outra parte continuaria a receber o seu salário via Ministério do Ensino Superior, transporta o vírus da desagregação, da desordem e da divisão.
Os estudantes portugueses, por seu lado, são os que mais esforços exigem às suas já depauperadas famílias. No final, obterão diplomas cada vez mais desqualificados e desqualificantes, verdadeira geração bloqueada na intermitência e na precariedade dos vínculos laborais. A estratificação dos cursos, dos estudantes e das Universidades consoante a formação concedida, uma vez que os três semestres iniciais mais não permitem, na formação social portuguesa, do que a integração em segmentos intermédios do mercado de trabalho destinado a funções técnicas tendencialmente precárias e relativamente mal pagas, reenviar-nos-á para o lugar de onde realmente nunca saímos: a periferia do sistema de divisão internacional do trabalho, remetendo para a categoria de onírico o projecto de um país justo e desenvolvido. Senhor Ministro do Ensino Superior, por onde anda V. Exa.?
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Artigo de opinião de João Teixeira Lopes [professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e responsável pelo Instituto de Sociologia da mesma Faculdade de Letras do Porto, foi deputado à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda], publicado no jornal "Público" de ontem (dia 13).

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