sexta-feira, janeiro 05, 2007

«[José] Sócrates e a Universidade», crónica de opinião de António Barreto no jornal "Público"

[O primeiro-ministro José] Sócrates decidiu fechar o ano com um debate parlamentar sobre o Ensino Superior. Como a política e a iniciativa do Governo têm sido, nesta área, quase nulas, podia esperar-se o habitual: o primeiro-ministro chamava a si a visão e a autoria das reformas e anunciava mudanças! O que já tinha feito com as saloiices dos acordos com Bill Gates e com o MIT [Massachusetts Institute of Technology], em gestos únicos no Mundo (em geral, esses acordos são feitos com Universidades, não com Governos). Foi uma frustração. Além do relatório da OCDE, o primeiro-ministro não tinha a dizer nada de importante, muito menos de inédito. O próprio relatório da OCDE, com defeitos e virtudes, pouco ou nada diz de novo. Há anos que um bom punhado de universitários e analistas portugueses anda a dizer aquelas coisas. Abrir as Universidades, acabar com a demagogia eleitoral nas instituições, elaborar contratos de desenvolvimento, fazer crescer o Ensino Politécnico, criar empréstimos aos estudantes, estabelecer uma verdadeira autonomia de gestão e financiar em função do desempenho: ideias, entre outras, discutidas há anos. Sócrates fez suas propostas sobejamente conhecidas, umas da OCDE, outras avulsas. Mas, sem ousadia e com ar cansado, reafirmou convictamente os erros mais flagrantes: em vez de deixar cada Universidade organizar-se como melhor entenda, mantém um sistema de governo único para todas as instituições, apenas tolerando a variedade no acessório. Ou prossegue a política de autonomia da Ciência, para a qual há recursos europeus, usando as Universidades como simples barrigas de aluguer. Ou então reconhece o CRUP (Conselho de Reitores das Universidades públicas Portuguesas), um dos organismos mais conservadores e nefastos da Administração Pública, como a entidade interlocutora e representativa das Universidades. Na verdade, este Conselho serve para "poupar trabalho" ao Governo, uniformizar as Universidades, mantê-las niveladas "por baixo" e estimular a espionagem ou a inveja como antídotos contra a diferença entre instituições e a distinção das melhores. Aliás, o apoio que este organismo ofereceu ao primeiro-ministro é revelador da inocuidade dos planos governamentais.

Para as questões-chave das Universidades (diversidade absoluta das instituições, sistema de governo e gestão, responsabilidade dos dirigentes, prestação de contas a entidades exteriores, rigor no acesso dos estudantes e estatuto da carreira docente), o Governo sugere meias soluções ou medidas erradas. Há anos que se espera uma iniciativa enérgica para as Universidades. Não mais "uma reforma", muito menos "a reforma". Simplesmente o impulso suficiente para que cada um se organize, se reforme, seja responsável e preste contas. Tudo leva a crer, pelos anúncios timoratos, que não é desta. Parece que Sócrates tem um problema com a Universidade, que receia e não percebe.

As Universidades portuguesas (e os Institutos Politécnicos) têm falhado em grande parte da sua missão. É verdade que existem, aqui e ali, Escolas, Institutos e Centros ou Departamentos que se distinguem pela sua qualidade, pela projecção externa ou pelo nível elevado da sua investigação. Também é certo que, entre centenas de milhares de estudantes e dezenas de milhares de diplomados, há pessoas de excepcional valor. Mas, no conjunto, as muitas dezenas de Faculdades ou Institutos e as muitas centenas de cursos não têm brilhado pelo papel que desempenham na sociedade. Na Europa e no Mundo, as Universidades portuguesas distinguem-se pela mediocridade. Em Portugal, pela ausência em quase tudo o que é importante.

A Universidade portuguesa não cumpre grande parte dos seus deveres. Pouco na cultura e nas artes. Quase nada na inovação. Muito pouco na investigação autónoma. Deficiente na ligação às empresas. Assim-assim na formação, com profissionais incultos e mal preparados. Mais ou menos no Ensino, de qualidade medíocre. Muito mal no acompanhamento das realidades públicas, economia, sociedade, demografia, políticas públicas, saúde pública, sistemas de transportes, administração pública... Mal no desenvolvimento de uma atitude crítica e atenta, formada e fundamentada, por parte dos seus académicos.

A principal contribuição da Universidade portuguesa, ao longo das últimas décadas, terá sido a de albergar centenas de milhares de candidatos e de assim ter colaborado no formidável crescimento da população a frequentar o Ensino Superior. Em cerca de trinta anos, passou-se de menos de trinta mil para perto de quatrocentos mil estudantes. Mesmo assim, esse papel positivo tem restrições. Ainda ficámos, no que toca à população diplomada, muito atrás dos outros países. O crescimento foi feito em detrimento continuado da qualidade e do rigor. O grau de desperdício que se verifica no Ensino Superior é enorme. Há polémica sobre os números, mas pode calcular-se como qualquer coisa entre 38 e 50 por cento o número de estudantes que frequentam uma instituição de Ensino Superior e que nunca acabam qualquer diploma. Em tempo, em esforço, em recursos financeiros, em espaço e em equipamento, esse desperdício é nefasto. Até porque impede a criação de um «ethos» académico rigoroso e esforçado.

Se alguém procurar o que de importante veio da Universidade nestas últimas décadas, na cultura, nas artes, na tecnologia, na inovação, na administração pública, no desporto, no olhar crítico sobre a sociedade, na intervenção e no acompanhamento permanente da vida económica e social, a lista será bem curta! O que de melhor se fez na economia, na tecnologia, na agricultura, na saúde pública, nas artes ou na cultura em geral foi geralmente feito fora da Universidade, apesar da Universidade e muitas vezes contra a Universidade. Também a este propósito se discute a eterna questão do contexto. Em resumo: não se pode ter uma Universidade melhor do que a sociedade em que ela vive! Esta é a senha e contra-senha do pior espírito que se pode imaginar. Bem pelo contrário, a uma Universidade exige-se exactamente o contrário. Que seja muito melhor do que a sociedade, melhor do que as empresas, melhor do que o Governo. Que seja capaz de um elevadíssimo grau de responsabilidade, compatível com uma enorme autonomia. Que seja o local da maior criatividade possível e de incontido espírito crítico. Que seja o local onde ensinar não seja a única missão e principal fardo, mas um instrumento de cultura e de ciência. Uma instituição onde a diversidade seja total, onde o carácter e a reputação sejam estimulados e não combatidos. Numa palavra, uma Universidade.
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António Barreto é professor universitário no ISCTE [Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa] e investigador do ICS [Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa], assinando dominicalmente a sua crónica de opinião «Retrato da Semana» no jornal "Público" [o presente texto de António Barreto foi publicado na edição de 24 de Dezembro do "Público"].

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