domingo, janeiro 07, 2007

«Opções técnicas e opções políticas para o Ensino Superior [português]», opinião de André Freire

Salvo honrosas excepções, o Ensino Superior público em Portugal tem muito mais qualidade do que o privado e a OCDE reconhece-o, pelo menos implicitamente. Por isso, quando sugere uma emulação do sector privado tal só pode derivar de fetichismo ideológico.
A OCDE divulgou o seu parecer sobre o estado do Ensino Superior em Portugal e propôs algumas mudanças. A avaliação (muitas vezes [realizada] por peritos internacionais) é há muito [tempo] um elemento central e recorrente da actividade dos professores e investigadores do Ensino Superior, sendo indispensável para a sua qualidade e validade: para o recrutamento e a progressão nas carreiras; para a obtenção de financiamentos para a investigação; para a publicação em revistas e livros de índole académica. Mesmo os cursos [também] têm sido recorrentemente avaliados. Ou seja, este subsistema da Administração Pública [o Ensino Superior público] deve ser o [subsistema que é] mais sistemática e regularmente avaliado. A avaliação internacional, seja por estar menos comprometida com os agentes nacionais, seja porque o país tem que afirmar-se internacionalmente, é crucial. Logo, só pode saudar-se a avaliação da OCDE.
Contudo, é preciso também evitar cair no deslumbramento acrítico face ao que vem de fora. Por um lado, é preciso reconhecer que muito do que é dito naquele parecer, sobretudo em matéria de diagnósticos, tinha já sido constatado por vários estudos e instituições portuguesas. Por outro lado, é sobejamente conhecido o papel das instituições internacionais na afirmação da globalização neoliberal. Vejam-se, por exemplo, as obras do economista [prémio Nobel] Joseph Stiglitz («Globalização: a Grande Desilusão») e do politólogo Manfred Steger («Globalism: Market Ideology Meets Terrorism», obra esta premiada).
A OCDE começa por reconhecer o enorme esforço que tem sido feito: entre 1975 e 2001, Portugal apresenta a maior taxa de crescimento da UE15 em termos do número de estudantes no Ensino Superior. Porém, em 2002 Portugal apresentava ainda a menor taxa de diplomados no grupo etário 25-34 anos do conjunto da OCDE. Recordemos que, no Governo anterior, se insinuou que Portugal já teria diplomados a mais... e se cortaram vagas mesmo em instituições onde não ficavam lugares por preencher. Além disso, o parecer considera que o Ensino Superior tem um papel crucial no desenvolvimento dos países, nomeadamente na esfera económica. Por fim, o relatório reconhece que, em percentagem do PIB, os gastos com o Ensino Superior em Portugal são semelhantes à UE15 (estão efectivamente ligeiramente abaixo). Mas também diz que estão muito abaixo dos [investimentos] de certos países (Dinamarca, Suécia, Finlândia) e, sobretudo, refere que "os países que têm um grande atraso a recuperar (como Portugal) precisam de gastar muito mais do que os países mais avançados". Além disso, recorde-se que os gastos médios absolutos [do Estado] por aluno em Portugal (em paridades do poder de compra) estão muitíssimo abaixo da média da OCDE e da UE (veja-se o meu artigo no «PÚBLICO», a 13/11/2006). Por tudo isso, o parecer conclui que "a despesa pública com Educação Superior (em Portugal) terá de expandir-se progressivamente no longo prazo em linha com a expansão no número de alunos que terá de ser estimulada".
É óbvio que isto representa uma crítica implícita ao desinvestimento no Ensino Superior a que assistimos com este Governo no Orçamento para 2007: o maior corte [orçamental] de sempre. Tanto mais que em 2005/06 e 2006/07 se assistiu a um aumento dos candidatos, ao contrário do que se tinha passado em 2001/02. E, digo eu, a política é sobretudo feita de prioridades: a área prioritária na campanha eleitoral de 2005 leva um corte de 8,2% (MCTES [Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior]), mas a Defesa sobe 2,5%. Porém, segundo as Nações Unidas (PNUD, 2005), em 2002 Portugal tinha gastos militares que representavam 2,1 por cento do PIB, muito acima da UE25+3 (1,8 por cento).
As orientações neoliberais estão bem presentes pelo menos em dois domínios. Primeiro, quando a OCDE defende um aumento das propinas, sobretudo no médio prazo (porque a questão é politicamente sensível...), recomendando até uma revisão constitucional para tal. O principal argumento é o de que a origem social dos estudantes revela que estes são de meios socioeconómicos relativamente favorecidos. Porém, esta opção é contraditória com o papel estratégico concedido ao Ensino Superior: se este é tão crucial para o país porque hão-de ser sobretudo os beneficiários a pagar. Além disso, as classes médias assalariadas são das que pagam mais impostos e estes devem servir para alguma coisa, ou não? E, em muitos casos, tais aumentos [de propinas] podem contribuir para limitar a desejável expansão do número de diplomados.
É sobejamente conhecido que, salvo honrosas excepções, o Ensino Superior público em Portugal tem muito mais qualidade do que o [Ensino Superior] privado e a OCDE reconhece-o, pelo menos implicitamente. Por isso, quando sugere uma emulação do sector privado tal só pode derivar de fetichismo ideológico: a OCDE propõe que os docentes e funcionários do Ensino Superior público deixem de ser funcionários públicos. Mas sendo a qualidade do Ensino Superior público bastante superior à do privado, porquê copiar este?
Mais do que quaisquer mudanças no vínculo laboral são precisos é mais incentivos meritocráticos nos recrutamentos e nas promoções, bem como estímulos (pecuniários e outros: reduções de carga lectiva, por exemplo) à cooperação e à publicação internacionais, etc. A OCDE propõe que se combata a endogamia («inbreeding»). Sugere ainda um sistema de recrutamentos e promoções competitivo, transparente, apoiado em peritos internacionais e exclusivamente baseado no mérito (no ensino e na investigação). Tendo em conta o peso excessivo dos convidados em muitas Universidades, bem como os entorses que existem em muitos recrutamentos e promoções, não posso estar mais de acordo. Para começar, e porque a peritagem internacional custa bastante dinheiro (que muitas Universidades não têm...), já não seria nada mau se o MCTES instituísse uma classificação quantitativa padronizada para cotar as diferentes publicações (em revistas, em livros, nacionais, estrangeiras, etc.) dos docentes, consoante o seu mérito relativo.
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André Freire é professor universitário de Ciência Política no ISCTE [Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa] e investigador no ICS [Instituto de Ciências Sociais] da Universidade de Lisboa e no CIES [Centro de Investigação e Estudos de Sociologia] do ISCTE; o seu presente artigo de opinião foi publicado na edição do passado dia 26 de Dezembro do jornal «Público».

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