domingo, dezembro 09, 2007

terça-feira, dezembro 04, 2007

«Prioridades políticas (II)», opinião de André Freire

É de todo incompreensível que uma área definida como prioritária seja alvo de tantos e tão profundos cortes.
No último artigo, propus-me analisar a prioridade dada pelo Governo PS à qualificação dos portugueses (definida como uma prioridade nas eleições de 2005). Seleccionei como indicador a despesa com os vários níveis de ensino. Não sendo obviamente o único indicador para aferir do grau de prioridade efectivamente dado, trata-se de um indicador bastante importante. Referi duas cautelas. Primeiro, estamos num período de austeridade. Segundo, temos de ver qual o nível de investimento numa perspectiva comparativa: não fará muito sentido aumentar os investimentos em áreas comparativamente sobrefinanciadas; na medida do possível, faz sentido aumentar o investimento em áreas comparativamente subfinanciadas, sobretudo se prioritárias.
Das comparações que fiz (dados da OCDE, Education at a Glance 2007), verifiquei três coisas. Primeiro, em termos de gastos médios absolutos por estudante (ajustados ao poder de compra em cada país) Portugal gastava em 2005 menos do que a média da OCDE em qualquer nível de ensino, mas sobretudo no superior. Se queremos ter universidades tão boas como as dos EUA ou da Suécia temos também de pensar em gastos absolutos, não basta considerar despesas relativas. Segundo, em termos de percentagens do PIB, apenas no caso do superior estávamos abaixo da média da OCDE (0,4 pontos percentuais em 2005: 1,0 para 1,4). Terceiro, a evolução dos gastos com a educação (todos os níveis) entre 1995 e 2005 revela que Portugal apresentou um nível de crescimento inferior à média da OCDE.
Não pretendo subalternizar as questões da organização, dos padrões de selecção dos docentes, dos sistemas de incentivos, etc. Também não pretendo negar que existem problemas de performance nos vários níveis de ensino, nem que existem problemas de desperdício de recursos que é preciso corrigir. De todo! Aliás, já escrevi sobre alguns desses temas (PÚBLICO, 26/12/06 e 21/5/07). Também não nego que têm sido tomadas várias medidas positivas, nos vários níveis de ensino, designadamente o aumento do investimento em ciência e as avaliações internacionais (das pesquisas, das instituições, etc.). Pretendo apenas, primeiro, desmontar a doxa dominante. Um exemplo paradigmático é o recente livro de Medina Carreira (O Dever da Verdade, 2007). Aí se diz (p. 59): "No que respeita à educação há muita gente equivocada, porque o esforço financeiro de Portugal é, em termos relativos, dos mais elevados da EU/15. (...) O nosso problema, quanto à educação, é pouco financeiro e muito político (...)." Este raciocínio é apenas parcialmente verdadeiro: não se aplica (pelo menos) ao ensino superior. Segundo, tendo em conta o subfinanciamento comparativo do ensino superior, pretendo realçar que é de todo incompreensível que uma área definida como prioritária, e que é efectivamente estratégica para o país, seja alvo de tantos e tão profundos cortes.
Não sou o único a fazer esta avaliação. No parecer sobre o estado do ensino superior em Portugal (2006), a OCDE diz o seguinte (p. 19): "O nível de despesa pública com a educação superior em Portugal, 1,04 por cento do PIB, embora semelhante à média da UE 15, está significativamente abaixo de países como a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia. (...), é importante notar que os países que estão a tentar alcançar os níveis de sistemas de ensino superior mais desenvolvidos precisam provavelmente de mais investimento, em percentagem do PIB, do que os países mais avançados. [sublinhado meu]" O parecer está disponível no site da tutela.
A área da defesa está sobrefinanciada. Pelo menos é o que nos indicam os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2007): na UE 27 + 1 (Noruega), há apenas quatro países com gastos superiores a Portugal. A média de gastos na defesa é de 1,7 por cento do PIB; em Portugal é de 2,3. Entre 2002 (PNUD, 2005) e 2005 (PNUD, 2007), 19 dos países considerados reduziram o peso relativo das suas despesas militares face ao PIB; cinco mantiveram-no exactamente igual; apenas três subiram o peso relativo das despesas militares, nomeadamente Portugal (+0,2). Admito que possam existir alguns problemas de comparabilidade mas, a existirem, não serão nem um exclusivo do caso português, nem da área da defesa. De qualquer modo, trata-se dos únicos dados comparativos disponíveis e publicados por uma fonte cuja idoneidade ninguém contesta.
Quando falamos de prioridades temos de comparar gastos relativos em diferentes áreas. Portugal não só gasta muito mais com a defesa do que com o ensino superior (ao contrário de outros países), como os gastos com aquela área têm aumentado, ao passo que os gastos com o ensino superior têm diminuído. No orçamento de 2007, a defesa aumentou 2,5 por cento (Expresso, 21/10/06). No Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) registou-se um corte global de 8,2; só para o ensino superior o corte foi de 14 por cento (Diário de Notícias, 8/11/06). No orçamento de 2008, a defesa cresce 8,5 por cento e o MCTES cresce 8,9. Porém, as verbas do MCTES vão fundamentalmente para a ciência (PÚBLICO, 13/10/07). Os reitores fizeram as contas e concluíram que, primeiro, em 2008 o corte real no superior é de 5 por cento e, segundo, o esforço de contenção que tem sido feito ao longo da legislatura é quatro vezes superior ao esforço que tem sido feito nas restantes áreas da governação (Primeiro de Janeiro, 19/10/07). E, de 2005 para 2007, o número de alunos aumentou de valores inferiores a 40.000 e 35.000, respectivamente no universitário e no politécnico, para 51.472 e 41.938 (PÚBLICO, 16/10/07). Alguém falou em prioridades?
P.S.: As recentes eleições para a Assembleia Estatutária na Universidade Técnica de Lisboa revelam que não são só os sindicatos que não se revêem nas políticas do MCTES: a Lista A, "Por uma universidade pública" e contra o modelo fundacional, venceu em todas as faculdades (Técnico e ISEG incluídos), obtendo 8 lugares em 12.
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André Freire é professor universitário de Ciência Política no ISCTE [Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa] e investigador no ICS [Instituto de Ciências Sociais] da Universidade de Lisboa e no CIES [Centro de Investigação e Estudos de Sociologia] do ISCTE; este seu presente artigo de opinião foi publicado na edição de ontem (4 de Dezembro) do jornal «Público».

Anteriormente já havíamos publicado um outro texto do mesmo autor: «Opções técnicas e opções políticas para o Ensino Superior [português]».