segunda-feira, maio 14, 2007

«De regresso à barbárie?», por São José Almeida

Também em Portugal há uma nova casta de privilegiados que gerem o poder económico e que têm direito a benesses.
Em todas as épocas, as classes dominantes tiveram as suas aristocracias que geriram a sociedade e, de forma mais extensa ou mais diminuta, exerceram o poder em seu nome. Eram castas de servidores que, pelo facto de serem escolhidos para exercer o poder, recebiam, em retribuição pelos serviços que prestavam, privilégios e benesses. Do Império Romano ao Império Otomano, das monarquias feudais às monarquias liberais, sempre houve uma casta de funcionários do poder que geriam a sociedade e a economia, em troca de privilégios e de benesses e, nalguns casos, até eram nobilitados em título, por geração ou vitalícios, o que os equiparava socialmente à nobreza. Um dos objectivos das revoluções democráticas e dos regimes democráticos é acabar com a existência de castas privilegiadas, com a existência de aristocracias, e a consequente criação de sistemas de gestão da sociedade em que os cidadãos estejam em igualdade de tratamento e de acesso aos bens. Ou seja, em que quem gere a sociedade, com mais ou menos poder, o faça sem se tornar numa casta privilegiada com direito a benesses e a um tratamento que o comum cidadão não tem.
Ora, esta semana, o país ficou a conhecer a confirmação de um facto que já era intuído a partir de informações e sinais dispersos. Também em Portugal há uma nova casta de privilegiados que gerem o poder económico e que têm direito a benesses remuneratórias que os colocam acima do comum cidadão. São os gestores ou administradores. Os gestores ou administradores de topo que, segundo um estudo da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, mais que duplicaram os seus salários entre 2000 e 2005, auferindo um total de 3,5 milhões de euros em 2005. Sendo que as vinte empresas mais cotadas na bolsa aumentaram ainda mais os seus gestores ou administradores, um aumento que neste caso é de 3,2 vezes, ou seja, de 220 por cento.
Isto num país onde para o mesmo período o aumento salarial médio dos trabalhadores foi de 15,7 por cento.
Isto no país onde, em 2006, os salários baixaram 0,9 por cento em valores reais. Isto no país em que os trabalhadores perderam, em 2006, poder de compra como não acontecia há 22 anos. Isto num país que, segundo um estudo da Comissão Europeia, foi o país da zona euro com menor crescimento na sua economia. É neste país que há uma nova casta, à semelhança do que acontece nas outras sociedades capitalistas em mutação, uma casta de gestores ou administradores económicos, os novos serventuários do poder real, o poder económico e logo político, onde se destacam os gestores ou administradores das empresas que vivem da especulação financeira, a nova ordem de valores do capitalismo, e que lideram a bolsa.
Esta criação de uma casta de gestores ou administradores é, também ela, uma forma de manifestação da revolução em curso nas sociedades capitalistas e consequência da nova luta de classes que se desenrola a partir de cima, a partir do poder, para retirar direitos sociais e económicos aos cidadãos comuns, em nome do interesse e da liberdade do mercado, uma liberdade que mais não é do que a liberdade do mais forte, a qual põe em causa e desrespeita o princípio da igualdade de tratamento a que todos os cidadãos têm direito nas democracias. E põe de forma frontal em causa os conceitos que têm gerido a redistribuição da riqueza nas sociedades democráticas da Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
O que é curioso é que esta criação de casta de gestores ou administradores, da nova aristocracia do dinheiro, tem sido muitíssimo interpretada como tratando-se de uma nova elite. E é curiosa esta interpretação pelo que ela significa do ponto de vista da ideologia que a suporta. É que equiparar a elite de uma sociedade aos que exercem o poder, económico ou outro, é também uma forma de involução histórica, de regresso ao passado. O regresso a um mundo pré-iluminista, pré-Revolução Francesa, pré-moderno. E o abandono do conceito de elite tal como ele se sedimentou na segunda metade do século XX, a ideia do 'escol', do que há de melhor na sociedade, de mais prestigiado, o que, como é cristalino, não se reduz às aristocracias reinantes, antes está muitas vezes contra elas.
Daí que esta constatação da criação também em Portugal de uma casta de gestores ou administradores seja também um sintoma de nostalgia de uma barbárie social em que os mais fortes exploram e usufruem a riqueza produzida também pelos mais fracos, sem que haja factores de equilíbrio e de correcção que introduzam a igualdade de tratamento e de direitos entre cidadãos.
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São José Almeida é jornalista e escreveu este artigo de opinião no diário «Público» deste sábado (dia 12).

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